ENTREVISTA COM ANDRE MUSTAFA

 


1.       De que forma Mustafá usa a performance para aproximar o universo dos Orixás do cotidiano humano?

A performance não é o mote principal de minha exposição; o foco está nos desenhos feitos com canetas esferográficas. Contudo, as performances têm um papel fundamental ao complementar e didatizar o tema, permitindo uma compreensão mais profunda dos contos e histórias que inspiram os desenhos e pinturas. Embora a arte, por si só, não necessite de explicações pormenorizadas, acredito ser essencial destacar certas questões para evitar reinterpretações equivocadas no futuro. Como bem afirmou Agbemin Martins, sacerdotisa do culto aos Orixás e filha de Mãe Stella: “O que não se registra, o vento leva.” Nesse sentido, vejo a performance como uma maneira de fixar o vento no tempo e espaço, assegurando que a mensagem se mantenha fiel à intenção original. Walter Benjamin, em sua reflexão sobre a “aura” da obra de arte, nos lembra que cada expressão artística tem um contexto único que pode se perder na transmissão ao longo do tempo. Assim, a performance não só amplia o alcance das narrativas dos Orixás, mas também preserva a autenticidade do que eu quis comunicar, reforçando o elo entre a obra e seu significado.

 



2.       Como a vivência entre o Brasil e a Europa influencia a representação dos Orixás nas obras de Mustafá?

Penso que a questão se torna mais clara ao falarmos da Bahia, especialmente Salvador, onde passei minha infância e parte da juventude, e do norte de Portugal, onde vivo atualmente com minha filha. Foi em Salvador que conheci os Orixás; eles abriram à porta do meu coração e me ampararam ao longo de minha trajetória. Contudo, seria um equívoco reduzi-los apenas a uma conexão religiosa. Os Orixás representam uma filosofia de vida sofisticada, que combina forças naturais e ancestrais. Ao viver em Portugal, percebo como essas forças ancestrais dos Orixás se refletem na vida dos pescadores da Póvoa de Varzim e em elementos culturais preservados na natureza, arquitetura, vestuário, culinária e modos de falar locais.

A influência dessa vivência transcontinental entre Bahia e Portugal pode ser compreendida pelo conceito de diáspora cultural deStuart Hall, especialmente em seu livro Cultural Identity and Diaspora. Hall argumenta que as identidades culturais não são fixas, mas constantemente reformuladas em novos contextos, carregando vestígios históricos e ancestrais que dialogam com o presente. Essa perspectiva me permite explorar como os Orixás, enquanto símbolos ancestrais, transcendem fronteiras e se integram às culturas locais, revelando sua força nos detalhes do cotidiano português. Esse processo de descoberta e estudo reforça que os Orixás não pertencem apenas ao passado; eles continuam vivos, ressignificados pela interação entre diferentes culturas e realidades.

 


3.       O que você acredita em comunicar ao retratar os Orixás em contextos que fogem ao espaço religioso tradicional?

Ainda bem que estamos desconectando os Orixás de uma visão exclusivamente ligada aos espaços religiosos, permitindo-nos sintonizar com Eles além da atmosfera do culto. O sagrado nasce dessa sintonia e da compreensão de que os Orixás, que carinhosamente chamamos de Pai, Mãe, Avô ou até Tio, como muitos se referem a Exú, estão conosco a cada momento, orientando-nos em todas as dimensões da vida. Acredito que comunicar essa presença contínua é essencial, porque os Orixás não veem a vida como fragmentada — onde um momento pertence ao terreiro, outro ao trabalho, outro à casa. Para Eles, a vida é una, com seus encaixes e desencaixes, e minhas obras buscam representar justamente essa conexão universal.

Ao retratar os Orixás em contextos cotidianos, como uma briga de bar, o nascimento de uma criança, um banho de rio ou até o gesto de preparar uma comida com atenção plena, tento mostrar que Eles estão presentes em todos os aspectos da vida. Minha intenção é traduzir essa visão em escolhas artísticas específicas: uso de cores que evocam emoção, formas que sugerem movimento e narrativas visuais que conectam o espectador com esses momentos sagrados. Assim, busco quebrar barreiras e comunicar que os Orixás são uma força viva, que ultrapassa os limites do religioso e encontra eco no dia a dia de todos nós.



4.      Como a posição de Balogun e sua consagração ao Orixá Ogun impactam a abordagem espiritual e estética de Mustafá?

 

Tornar-me sacerdote no Ilê Axé Opô Afonjá, sob os ensinamentos de Mãe Stella de Oxóssi, foi um marco transformador em minha trajetória pessoal e artística. Desde os primeiros passos no terreiro em 1997 até minha consagração como Balogun em 2008, fui imerso em práticas que conectam o sagrado ao cotidiano, como a coleta de folhas, a decoração de barracões e a participação em celebrações nos mais diversos espaços de axé. Essas experiências, além de aprofundarem meu entendimento espiritual, moldaram minha abordagem estética, permitindo-me explorar formas de comunicar poeticamente a presença dos Orixás sem ferir sua sacralidade.

Essa busca encontra eco na obra de Robert Farris Thompson, que, em Flash of the Spirit, explora a maneira como a espiritualidade dos Orixás influencia a estética na diáspora africana. A convivência com irmãos de axé e mestres como Mestre Didi, Babá Toripè , Padá Ogun, Babá Kebê, Tonikã, Pai Bira de Xango... ampliou meu repertório, permitindo-me traduzir em imagens aquilo que muitas vezes é sentido, mas não visto. Minha arte busca equilibrar o que RowlandAbiodun, em Yoruba Art and Aesthetics, descreve como a tensão entre o visível e o invisível — o mundo material e o espiritual. Assim, minhas obras procuram resguardar as intimidades do sagrado, enquanto revelam sua presença viva e impactante em formas que dialogam com os irmãos de axé e o público em geral.

 



5.       Em sua opinião, quais são as implicações de relacionar temas como amor, ciúme e proteção ao universo sagrado afro-brasileiro?

Não vejo implicações em relacionar temas como amor, ciúme, vingança ou proteção ao universo afro-brasileiro, pois os Orixás vivem e compreendem plenamente esses sentimentos. Eles estão presentes em nossas vidas antes mesmo de qualquer ritual no terreiro, pois essas emoções são profundamente sagradas. Os Orixás nos acompanham em momentos de amorosidade, dor, solidão e até de recomeço, mostrando que sentimentos intensos não são dissociados da espiritualidade, mas sim parte essencial dela. Muitas vezes, buscamos os terreiros para encontrar uma explicação ou um equilíbrio para esses turbilhões emocionais.

Como PierreVerger demonstra em Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo, os mitos dos Orixás representam emoções humanas de forma complexa e simbólica, mostrando que aspectos como ciúme e proteção têm raízes profundas na cosmogonia iorubá. Além disso, Ruth Landes, em The City of Women, destaca como essas emoções são vividas no cotidiano dos praticantes, reforçando a conexão espiritual e comunitária. Em minha prática artística, esses sentimentos são retratados como expressões de forças ancestrais que permeiam a vida, demonstrando que amor e ciúme, por exemplo, não são opostos, mas energias complementares que refletem a riqueza e a profundidade do sagrado afro-brasileiro.

 

 


6.       De que maneira o “afeto sensorial” afro-brasileiro é explorado nas obras de Mustafá?

O afeto sensorial afro-brasileiro nas minhas obras está escancarado em gestos cotidianos carregados de simbologia: o pai que penteia o cabelo da filha, evocando Oxóssi e Oyá; o choro silencioso de Nanã bordando sua colcha na busca de dar vida ao desejo de ter um filho; ou mesmo a delicadeza de Yemanjá apreciando sua filha tocando piano, já que mulheres não tocam atabaques. Esses momentos, tão simples e universais, carregam o axé – a força vital – e revelam a espiritualidade que transcende o espaço do terreiro, pois ela começa no cotidiano, em gestos que muitas vezes passam despercebidos.

Esse olhar encontra eco no pensamento de Luis Antônio Simas, que em suas reflexões sobre ancestralidade no cotidiano brasileiro, descreve o axé como algo presente em práticas rotineiras, do preparo de um alimento ao entrelaçamento das mãos em um gesto de cuidado. Já Patrícia Hill Collins, em Black Feminist Thought (Pensamento Feminista Negro), nos ajuda a entender como o afeto e a conexão sensorial são essenciais para a sobrevivência e resistência cultural em comunidades afrodescendentes, transformando gestos em atos de resistência e preservação ancestral.

A minha arte busca evocar essas dimensões, não apenas captando as experiências sensoriais em si, mas convidando o público a vivê-las de forma direta, retomando o que muitas vezes se perde na desconexão contemporânea: o poder do axé em cada gesto humano.

 



7.       Como a saudade e o distanciamento de sua terra natal moldam a experiência espiritual de Mustafá em Portugal?

A saudade que sinto não chega a se comparar ao banzu vivido por nossos ancestrais na travessia cruel durante mais de 300 anos de escravidão. Contudo, existe uma saudade profunda de estar no terreiro, de colocar os pés no chão, de sentir o cheiro das folhas maceradas de axé no pilão. Saudade de ouvir as pessoas falarem com o sotaque baiano, de viver entre as cores, as comidas, os aromas de Salvador, uma cidade que ainda carrega, em suas ruas e vielas, o espírito da época colonial. Ao caminhar pelo Pelourinho ou pela Cidade Baixa, sinto como se o passado e o presente se fundissem, e é aí que a saudade se torna não só uma lembrança, mas uma força viva.

Viver em Portugal me impôs o desafio de reconfigurar esses axés. Aqui, reencontrei, através do povo português, um afago não na mesma intensidade, mas com um olhar carinhoso, um abraço afetuoso, por vezes, falta nas ruas de Porto. A percepção da espiritualidade e dos sinais dos Orixás, contudo, exige mais do que o simples olhar, requer um tempo de observação e silêncio. Aos poucos, aprendi a encontrar os sinais diários que antes via na Bahia: uma folha que cai ao meu lado, um graveto que se encontra no caminho, uma palavra inesperada de alguém, ou ainda o consolo de um amigo no momento de dor.

Portugal está cheio de imigrantes brasileiros, e quando encontro pessoas de Salvador, ouvir o sotaque baiano desperta em mim uma conexão imediata com minha terra natal. É como se, por um instante, eu estivesse novamente no meu lugar de origem. Essas trocas me ativam memórias profundas e me reconectam com o axé que, de alguma forma, se mantém vivo dentro de mim, mesmo em terras distantes.

Esta experiência espiritual, em terras lusas, só é possível quando me concentro nas materialidades do cotidiano, nas ações e gestos das pessoas ao meu redor. Não posso simplesmente esperar que a vida invisível dos Orixás se revele de forma explícita; ela se manifesta nas pequenas coisas, nas relações humanas, na simplicidade de um gesto de carinho ou na entrega silenciosa de um olhar, ou no rompante de uma briga e discussão inesperada que finaliza em socos, murros e pontapés vertendo sangue nas calçadas. A saudade aqui se torna um elo, uma ponte entre o que vivi e o que vivo agora, uma forma de transitar entre mundos e tempos, mantendo sempre a presença dos Orixás em minha vida cotidiana.




8.       Qual é o papel do corpo como “canal sensorial” na arte de Mustafá, especialmente no contexto da etnocenologia?

Na minha arte, o corpo se configura como um "canal sensorial" essencial para a manifestação das energias dos Orixás. Ao explorar as diversas linguagens artísticas, como a pintura, a escultura e a fotografia, percebo que o corpo vai além de um simples instrumento físico; ele se transforma em um veículo através do qual as forças espirituais e ancestrais se manifestam. Essa visão de corpo como meio de comunicação sensorial está em sintonia com a perspectiva da etnocenologia, especialmente nos estudos que consideram o corpo não apenas como uma presença visível, mas como um mediador entre o mundo material e o espiritual.

A etnocenologia, como campo que busca compreender as práticas culturais a partir da perspectiva dos próprios participantes, me permite refletir sobre como o corpo pode ser um espaço vivo de encontro entre as forças espirituais e as práticas cotidianas. Pesquisadora como Rosana Reguillo discute como as práticas de dança, performance e outros gestos corporais podem ser compreendidas como formas de conhecimento e resistência cultural, atreladas à experiência sensorial e espiritual. 

Em minha obra, o corpo é justamente essa ponte entre o visível e o invisível, o humano e o sagrado. A etnocenologia propõe que o corpo seja visto como mais do que uma forma ou instrumento, mas como uma espécie de arquivo cultural e espiritual. Ao me expressar artisticamente, não estou apenas representando a espiritualidade dos Orixás; estou permitindo que o corpo se transforme em um receptor e transmissor dessas energias. O gesto, o movimento, até mesmo o olhar e o toque, se tornam uma linguagem que ativa as forças divinas e as traz para o plano sensível.

Além disso, o trabalho de Rosana Reguillo, que explora as formas de resistência cultural a partir de ações cotidianas, reforça a ideia de que as práticas sensoriais do corpo, como as danças e cantos nas tradições afro-brasileiras, não são apenas performáticas, mas profundamente estruturantes para a compreensão da espiritualidade. Ao utilizar o corpo como um "canal sensorial", minha arte se coloca como uma experiência totalizante, que convida o espectador a perceber e vivenciar a presença dos Orixás em sua própria corporalidade. Essa percepção, em vez de ser restrita ao visual, se amplia para o emocional e o espiritual, ativando um sentido mais profundo e intuitivo do que está além da aparência.

Portanto, o corpo em minha arte não é apenas um objeto a ser observado; ele é um campo de forças que, ao se expressar, ativa uma dimensão sensorial e espiritual que dialoga com o espectador de maneira direta e íntima. Como os pesquisadores contemporâneos apontam, a arte não é só uma produção estética, mas uma experiência cultural e sensorial, onde o corpo desempenha o papel de mediador entre o visível e o invisível, entre o humano e o divino.

 


9. Em que aspectos o trabalho de Mustafá difere da representação tradicional dos Orixás na arte afro-brasileira?

Meu trabalho difere da representação tradicional dos Orixás na arte afro-brasileira ao buscar uma abordagem mais cotidiana e universal. Por exemplo, Carybé, um artista que admiro profundamente, retratou o candomblé com uma precisão quase etnográfica, capturando suas cerimônias, rituais e simbolismos dentro do contexto dos terreiros. Eu, no entanto, não tenho a pretensão de continuar nessa linha.

Minha proposta é explorar os Orixás fora dos portões do terreiro, conectando suas histórias, axés e itãs com as experiências do dia a dia. Um exemplo disso é o conto de Xangô e Iansã, onde Xangô não produz fogo sem a presença de Iansã. Essa narrativa, para mim, simboliza que a união de forças complementares — como homem e mulher — é o que gera uma potência criativa capaz de originar algo novo, seja uma vida, um projeto ou até mesmo o crescimento de um empreendimento amoroso ou financeiro.

Minha pesquisa, que desenvolvo desde 2005, tem como foco refinar a percepção da presença dos Orixás nas relações humanas e no mundo ao meu redor. Acredito que os Orixás são manifestações de energias naturais e cósmicas muito refinadas, e essa conexão vai além das celebrações públicas ou dos rituais nos terreiros. Como dizia minha mãe de santo, Stella de Oxóssi: 'Orixás é amor.' Essa frase é essencial para o meu trabalho, pois reforça que os Orixás não se limitam a momentos específicos de culto, mas estão presentes em cada interação significativa da vida, nas pessoas e nas forças que nos cercam.

Portanto, minha intenção não é inovar pela forma, mas ampliar a percepção das pessoas sobre como os Orixás podem ser vivenciados no cotidiano. Ao trazer essas energias para fora do espaço religioso, espero que o público possa reconhecer sua presença nas relações humanas, nas escolhas do dia a dia e nos momentos de criação e transformação.




10. Quais são as possíveis intenções de Mustafá ao retratar a relação entre o sagrado e o profano em suas obras?

As intenções por trás do meu trabalho, ao retratar a relação entre o sagrado e o profano, são múltiplas, mas todas convergem para um ponto: mostrar como os Orixás estão profundamente conectados ao nosso cotidiano. Minha pintura busca fortalecer uma corrente de pensamento — composta por escritores, artistas e filósofos — que reconhece os Orixás como forças da natureza, presentes em nossas vidas de maneira íntima e real. Essa presença não é distante ou reservada a momentos específicos de culto; ao contrário, é algo que nos abraça, conforta e, quando necessário, nos realinha.

O público que observa minhas obras encontrará a beleza e a força dos Orixás em sua plenitude: tanto no aspecto sagrado quanto no profano, presentes em cenas do dia a dia que muitas vezes ignoramos. Os Orixás, afinal, não permanecem em um altar, como ocorre na tradição cristã. Eles são ação, movimento, vida pulsante. Estão ao lado de seus filhos e adeptos para viver juntos, comer juntos, chorar e rir juntos. Essa proximidade é o que tento capturar na minha arte.

Um exemplo claro é a pintura de Exu tocando saxofone enquanto fuma charutos. A cena pode parecer inusitada, mas ela revela a essência multifacetada de Exu: o senhor do movimento, que une poesia e provocação. Ao tocar saxofone — instrumento que exige um sopro ritmado e preciso —, Exu se conecta com a ideia de soprar vida, criatividade e energia em suas manifestações. A cena também pode sugerir a vida sexual ativa, um aspecto que Exu frequentemente simboliza. Mas não se engane: isso não é uma banalização do sexo, e muito menos uma tentativa de colocá-lo em um pedestal.

O sexo, como outras dimensões da vida, é uma expressão do sagrado, e é essa reflexão que quero trazer. Se alguém não consegue reconhecer o sexo como algo sagrado, talvez tenha dificuldade em compreender a profundidade da presença dos Orixás em nossas vidas.

Minha arte é um convite para observarmos o que está ao nosso redor com mais atenção. Quero que as pessoas percebam que o sagrado e o profano não são opostos; são aspectos complementares da vida que se revelam em cada detalhe, em cada escolha, e que nos conectam diretamente aos Orixás.


11. Como o trabalho de Mustafá incentiva o espectador a refletir sobre sua própria espiritualidade?

A espiritualidade é um caminho profundamente individual e, muitas vezes, difícil de encontrar. Meu trabalho busca criar oportunidades para que o público reflita sobre isso por meio da contemplação artística. Quando o espectador observa e se deixa levar pelo universo sensorial das minhas obras, ele dá um passo importante em direção à reconexão com sua própria espiritualidade. A arte tem essa capacidade de abrir portas para um mundo perdido de significados.

Por exemplo, no quadro 'OGUN TIRA O PÉ, OXOSSI COLOCA', exploro a ideia de estar em contato direto com a terra. Esse ato, aparentemente simples, simboliza a importância de ouvir os mais velhos, respirar o ar da floresta e mergulhar no verde da mata. Caminhar, colocar os pés no chão, tem uma profundidade espiritual que muitas vezes ignoramos no cotidiano. A obra convida o espectador a refletir sobre os passos que ele dá em sua própria vida e o quanto está em sintonia com suas raízes e tradições.

Vivemos em tempos descritos por pensadores como Bauman como uma 'modernidade líquida', onde tudo é efêmero e fluido. Nesse contexto, a espiritualidade se torna ainda mais essencial, pois ela é o eixo que nos conecta ao que é duradouro e essencial. Minha arte tenta oferecer um espaço para essa reflexão: que espiritualidade não é algo distante ou místico, mas algo espontâneo, presente na relação com a natureza, na escuta dos mais velhos, e até nos pequenos gestos do dia a dia.

Por isso, acredito que a arte é uma ponte para a espiritualidade. Ela nos permite olhar para dentro e, ao mesmo tempo, enxergar o mundo ao nosso redor de uma forma mais conectada e profunda.




12. De que maneira a experiência da exposição “Meninos de Rua” na Alemanha contribuiu para o desenvolvimento do olhar social de Mustafá na arte?

Minha experiência na Alemanha, com a série de pinturas Meninos de Rua, utilizando a técnica de pastel seco, foi um marco importante para o meu desenvolvimento como artista e ser humano. Essa série foi minha forma de mostrar ao mundo a realidade das populações de rua, uma questão global que, infelizmente, continua crescendo de maneira alarmante. Ao retratar meninos e meninas que vivem nessa condição, procurei não apenas expor a dor e a vulnerabilidade dessas crianças, mas também despertar uma reflexão profunda sobre as causas estruturais desse problema.

Esse projeto me fez mergulhar em um processo de autodescoberta e sensibilidade social, conectando-me ainda mais com as questões de desigualdade e violência que cercam essa população. Ele não apenas expandiu minha visão artística, mas também me motivou a me engajar ativamente em iniciativas sociais. Desde então, fui convidado a colaborar com diversas organizações e projetos culturais e educativos, como o Ara Ketu, Olodum e Projeto Axé, em Salvador, além do Projeto Vocacional da Secretaria de Cultura e Educação de São Paulo e a ONG Ação Comunitária.

Essas experiências moldaram meu olhar social, ampliando minha capacidade de traduzir em arte as histórias e os desafios dessas pessoas. Mais do que nunca, acredito que a arte tem o poder de dar voz aos invisíveis e, ao mesmo tempo, inspirar ações concretas que possam transformar vidas.





13. Em que medida as obras de Mustafá oferecem um “diálogo cultural e espiritual” com as tradições e culturas?

As minhas obras buscam estabelecer um "diálogo cultural e espiritual" profundo, que transcende fronteiras geográficas e temporais, conectando a arte com as experiências humanas universais. Desde os tempos da Grécia antiga, por exemplo, as representações de deuses e semi-deuses sempre refletiram os sentimentos humanos mais profundos — o amor, a dor, a traição, a morte, a criação, a família, e as contradições que moldam o ser humano. Esses mitos não surgiram do nada, mas eram frutos de uma troca constante de influências entre culturas, como a grega e a egípcia, além das interações com povos do Oriente, trazidas pelas caravanas e o comércio. A Grécia antiga, longe de ser a cultura ocidental idealizada, foi, na verdade, uma sociedade rica em intercâmbios culturais.

Da mesma forma, minhas obras buscam refletir essa interação entre diferentes visões de mundo, propondo uma fusão de elementos espirituais e culturais que dialogam com a natureza humana. Ao utilizar a simbologia dos Orixás e suas interações com a natureza, procuro trazer à tona não apenas uma vivência pessoal, mas uma experiência universal que fala à humanidade como um todo.

Minha pesquisa tem sido uma jornada contínua de conexão entre diferentes tradições espirituais, que se cruzam em minha pintura. A visão dos Orixás não é isolada, ela dialoga com mitologias de diversas partes do mundo, como a grega, a egípcia, e até mesmo culturas contemporâneas. No fundo, a vida humana é uma "sopa cultural e espiritual", onde todos esses elementos se misturam. As tradições espirituais que encontro em minha arte não estão restritas a um único local ou período histórico, mas são traduzidas em uma linguagem universal, que pode ser compreendida tanto na Índia quanto na Noruega, ou em qualquer outro lugar do mundo.

Os Orixás, como forças naturais que guiam e modelam a humanidade, representam uma manifestação dessa interação, onde o humano se encontra com o divino, refletindo suas imperfeições e seus conflitos internos. Em minha pintura, procuro capturar essa tensão entre o sagrado e o profano, mostrando que a espiritualidade não é algo distante ou etéreo, mas algo presente no cotidiano, nos gestos simples e complexos da vida humana.

Portanto, minha arte busca criar uma ponte entre essas tradições e culturas, com o intuito de fomentar um entendimento mais profundo sobre como as forças divinas e culturais moldam nossas vidas, tanto individualmente quanto coletivamente. É uma tentativa de proporcionar ao espectador a chance de refletir sobre sua própria jornada espiritual e cultural, dentro de um contexto mais amplo e interligado.

 

14. De que maneira a trajetória de Mustafá no teatro e seu estudo em Direção Teatral refletem-se em suas obras visuais?

Quando estava na graduação em Direção Teatral pela Universidade Federal da Bahia, tive a oportunidade de vivenciar uma jornada que foi fundamental para o desenvolvimento do meu olhar artístico e para a minha conexão com a arte como um todo. Durante esse período, fui desafiado a explorar uma variedade de influências teatrais, principalmente as que fugiam das convenções tradicionais de autores como Stanislavski ou Shakespeare. Foi nesse momento que descobri autores e encenadores que me representavam de forma mais profunda, como EugenioBarba, Denise Stoklos e Jerzy Grotowski, cujos trabalhos exploravam as dimensões mais essenciais e espirituais do teatro.

O teatro de Barba, com seu enfoque na "Antropologia Teatral", me levou a perceber a força do corpo e da voz como meios poderosos de expressão. A pesquisa de Stoklos sobre o "Teatro Essencial", que explora a pureza da comunicação humana, também teve um grande impacto em mim. Já o teatro de Grotowski, com sua ideia das "7 cadeiras", desafiava o ator a se despir de qualquer artifício e a se conectar de forma visceral com o público e com o próprio ritual teatral.

Essas influências me ajudaram a romper com uma visão cartesiana do mundo e me conduziram a um entendimento mais profundo sobre a espiritualidade e a energia que movem os seres humanos e as forças da natureza. Ao explorar o teatro ritual e a etnologia, percebi que havia um paralelo claro com o meu trabalho artístico, especialmente na maneira como as energias espirituais se manifestam, como o "axé" dos Orixás. Essas energias são, para mim, como as dinâmicas que acontecem em uma performance teatral, em que o ator e o público se encontram e se transformam no processo.

No teatro, aprendi que não se trata apenas de apresentar uma história, mas de criar uma experiência que envolve o espectador de forma ativa. Essa mesma abordagem permeia minha pintura. Minhas obras não são apenas imagens, mas sim convites para que o público participe de um ritual visual, onde as forças cósmicas, os Orixás e a natureza se encontram e se revelam. Assim como no teatro, minha arte visa criar uma interação profunda, que provoca reflexão e nos conecta com a espiritualidade e com o movimento constante da vida.

Portanto, minha trajetória no teatro e minha pesquisa em Direção Teatral foram fundamentais para entender e aplicar essas ideias nas minhas obras visuais. O que busco nas minhas pinturas é a mesma essência que experimentei no palco: uma busca incessante pela conexão com o divino e o humano, o sagrado e o profano, e a capacidade de nos encontrarmos, nos transformarmos e nos conectarmos uns aos outros.



15. Como Mustafá simboliza o conceito de axé em suas criações?

Axé é, para mim, a força vital que permeia e sustenta tudo o que existe. Ele não é apenas uma energia espiritual, mas também uma essência que está presente em cada ser, em cada elemento da natureza e em todas as nossas ações. Axé é a energia fundamental que nos conecta com o universo e com nossos próprios princípios. Somos moldados não apenas pelas condições da nossa existência material, mas também pelos astros, pela conjunção dos planetas no momento do nosso nascimento, que definem a energia que vamos carregar ao longo de nossa vida.

Essa energia, ou axé, se manifesta de formas diversas. No momento da nossa materialização, no instante em que nascemos, recebemos uma energia específica que se conecta com os elementos da natureza: a terra, os rios, os ventos, as matas, até mesmo o mar. E, por mais que esses elementos possam parecer opostos em sua manifestação – como a terra seca e sem vida ou a exuberante mata – todos possuem o mesmo axé. Cada pedaço da natureza, cada estado de ser, carrega uma potência, uma força que nos molda e nos define.

Eu vejo o axé como um legado de nossos ancestrais, como algo que herdamos desde os tempos mais remotos, e que nos forma ao longo de nossa trajetória de vida. Essa força está nos momentos de conexão mais simples e profundas com o ambiente à nossa volta. Quando você se encontra na mata ou diante do nascer do sol à beira da praia, você sente uma sensação de encantamento? Se sim, então você está vivenciando o axé. É essa energia que flui, que transforma, que desperta algo em você e em tudo o que o rodeia. A natureza, com seus ciclos e suas manifestações, é um reflexo direto dessa energia vital.

Por outro lado, o axé também pode ser encontrado em lugares e momentos menos evidentes, mas igualmente potentes. Se você se acostuma com um ambiente de desordem, como uma casa cheia de acúmulos ou com ambientes carregados de violência e desrespeito, também está absorvendo o axé desse espaço, porque a energia é a mesma – ela existe e se apresenta de formas variadas, dependendo da sua percepção e conexão com o ambiente.

Nas minhas criações, tento transmitir essa ideia de que o axé não é algo distante ou abstrato. Ele está presente em nós, nas nossas interações, nas nossas relações, nas nossas percepções cotidianas. Meu trabalho busca capturar esses momentos, seja nas paisagens que nos encantam, nas forças elementares da natureza ou até nas situações que parecem menos harmônicas. O axé está em todos esses espaços e, através da minha arte, tento dar forma a essas energias que nos conectam com o universo de maneiras tão sutis e poderosas.

Essa reflexão sobre o axé em minha arte não é só uma questão de fé ou de crença religiosa, mas de como a vida se organiza e se manifesta de maneira constante e vibrante em cada parte do nosso ser e do mundo ao nosso redor.


16. De que maneira Mustafá utiliza a “memória ancestral africana” para se conectar com o sagrado mesmo fora do Brasil?

A conexão com a memória ancestral africana é, para mim, algo que transcende o espaço físico e as fronteiras geográficas. Quando falo sobre espiritualidade e ancestralidade, entendo que é possível orar e se conectar com o divino em qualquer parte do mundo, independentemente de estarmos dentro de um templo ou fora dele. O conceito de conexão astral ou ancestralidade está profundamente enraizado em nosso ser, no nosso DNA. Cada célula, cada molécula que compõe o nosso corpo carrega a memória e a história de nossos ancestrais. Se olharmos para os QUARKs – as partículas subatômicas que formam a matéria – podemos vislumbrar as origens mais antigas da humanidade, aquelas que remontam aos nossos ancestrais aquáticos. E sim, eu sou da água! Não compartilho da teoria popular de que viemos dos macacos, mas sim de que temos uma ligação profunda com os elementos primordiais da natureza.

A conexão com o sagrado, para mim, não está em um templo isolado, mas em todo o meu ser e em cada ação cotidiana. É como se nossa ancestralidade fosse uma linha invisível que nos conecta a nossos antepassados e nos dá força, sabedoria e orientação. Eu vivo isso diretamente, conectado aos meus Orixás, especialmente a Ogun, que representa para mim o princípio da criação, a energia da invenção e do movimento. Ogun é o grande civilizador, o arquétipo do inventor, do criador de novas possibilidades. E é através dessa energia criativa que me vejo, tanto em minha prática artística quanto na minha vida pessoal. A busca constante por inovação e reinvenção, por criar novas formas, novas matérias e novos processos para minhas obras, é um reflexo direto dessa força ancestral.

Minha conexão com o sagrado e com Ogun se manifesta também em práticas cotidianas que cultivo com dedicação: minhas oferendas, as contas que carrego, a luz das velas que acendo, as conversas silenciosas e cheias de significado com ele. Tudo isso me mantém realinhado com a minha própria essência, com a minha matriz de origem. Quando estou nas ruas de Portugal ou em qualquer outro lugar fora do Brasil, a memória ancestral e os ensinamentos dos meus Orixás ainda guiam meus passos. Eles se manifestam em sonhos, visões e em momentos de reflexão que encontro, seja nas ruas ou na tranquilidade do meu trabalho artístico.

E, se for necessário, basta olhar para as minhas obras desde 2005, quando comecei a explorar mais profundamente as experiências vividas em Salvador, minha terra natal. Salvador é um lugar pulsante de Axé, um centro energético onde o Orixá se faz presente no cotidiano da cidade. A cidade é viva, respirando com a energia ancestral que transcende o tempo. E é nesse ambiente, com seus rituais, suas músicas, suas danças e suas manifestações culturais, que fui forjado como artista e ser humano. Ao longo de minha trajetória, tenho encontrado formas de expressar essa conexão com a memória africana e com o sagrado em tudo o que faço, tanto no Brasil quanto fora dele.

Essa ligação direta com minha ancestralidade africana e com o Axé não é algo que se limite ao espaço físico de um país ou cidade. Ela é vivida em cada traço das minhas obras, na energia que transmito por meio delas, e nas manifestações espirituais que me acompanham, seja em Salvador, em Portugal ou em qualquer lugar onde minha arte me leva. A memória ancestral africana é um fio condutor que nos liga ao sagrado, e, mesmo fora do Brasil, é uma energia que pulsa dentro de mim e se reflete em tudo o que crio.

 


17. Qual seria a importância da cor e das formas no trabalho de Mustafá para capturar a essência dos Orixás?

A cor e as formas no meu trabalho têm um papel essencial na captura da essência dos Orixás, refletindo não apenas a vibrante realidade da minha cidade natal, Salvador, mas também a profundidade simbólica e espiritual que atribuo à minha arte. Salvador é uma cidade imersa em cores, onde cada canto, desde as ruas até os mercados, está impregnado de tons vivos e pulsantes. Para mim, essas cores não são apenas uma característica estética, mas uma forma de traduzir a energia e a vitalidade do cotidiano, especialmente nas comunidades periféricas. A cor, em Salvador, é sinônimo de resiliência, reinvenção e resistência. Mesmo diante da pobreza e das dificuldades políticas, as pessoas se expressam através das cores, como uma maneira de afirmar sua identidade e reafirmar sua presença no mundo.

Essa experiência vivida nas ruas de Salvador é transferida para a minha obra artística, com um uso intenso e vibrante das cores. Cada Orixá, na minha cosmovisão, é associado a uma cor que representa sua energia e força, e eu traduz isso em minhas pinturas de maneira visceral. Ao incorporar as cores nos elementos visuais, busco evocar a presença desses Orixás de maneira quase palpável, trazendo para o espectador a sensação de uma força espiritual que transcende o físico.

A inclusão de canetas esferográficas coloridas no meu processo criativo, um marco no meu repertório, amplia a paleta de possibilidades. As cores que antes eram limitadas a uma gama de tonalidades mais tradicionais agora se expandem, permitindo uma comunicação mais rica, conectando as experiências modernas com a ancestralidade. Isso não só reflete a minha vivência e conexão com o mundo de Candomblé, mas também como absorvo e interpreto a vida nas diferentes culturas em que estou imerso, seja em Salvador, São Paulo ou Portugal.

Quanto às formas, observo o mundo ao meu redor e as interpreto por meio das influências de grandes mestres, como Goya, Escher e Caravaggio, cujas abordagens expressivas e dramáticas internalizo. Minha arte não se limita a um estilo específico; ela é um caldeirão de influências, que se fundem e se reconfiguram de acordo com as paisagens e as realidades que encontro. A arquitetura e a paisagem, tanto de Salvador quanto de outros lugares como São Paulo e Portugal, servem como moldes para essas formas que transito entre representações figurativas e abstratas.

Minha pintura, assim, se torna uma meditação sobre a sinergia entre a natureza, o humano e o espiritual. As formas são, de certo modo, uma síntese da minha percepção das influências culturais que encontrei ao longo da minha vida, mas também do meu olhar profundo sobre os Orixás e as forças que governam tanto o plano físico quanto o espiritual. Traduzo essas forças por meio de uma forma de arte que é, ao mesmo tempo, sensorial e imersiva, convidando o espectador a entrar num mundo onde cor e forma transcendem o plano visual e se tornam canais para uma experiência mais profunda e espiritual.

Seja com a exuberância das cores ou com a geometria das formas, minha arte faz um convite a uma reflexão sobre as energias vitais que nos conectam, sejam elas ancestrais ou modernas. Consigo, com maestria, capturar a essência do sagrado, dando-lhe uma linguagem visual que comunica o eterno diálogo entre o homem, os Orixás e a natureza.

 


18. Como você interpreta o papel da “família espiritual” na vida e na obra de Mustafá em um contexto estrangeiro?

Acredito que para entender o papel da "família espiritual" na minha vida e obra, é necessário primeiramente compreender os conceitos de família e espiritualidade, e como esses se entrelaçam em minha jornada, especialmente em um contexto estrangeiro. Depois de perder minha mãe carnal em 2009, aos 80 anos, passei por uma reconfiguração profunda. A divisão da minha família, com todas as questões de inventário, advogados e disputas sobre bens, coincidiu com o fim do meu primeiro casamento e minha migração para São Paulo. Lá, fui acolhido por irmãos, tanto de sangue quanto de alma, que acreditaram no meu potencial de crescimento. No entanto, a solidão também foi uma constante, e esse período me forçou a reconstruir os laços de afeto e comunicação, muitas vezes em um contexto de isolamento.

Em São Paulo, passei muito tempo sozinho, e, nesse processo, enfrentei também a perda de comunicação com meus irmãos de axé, especialmente após o falecimento da Iyalorixá Mae Stella de Oxóssi, minha mãe espiritual. Essa perda foi um marco doloroso, que me levou a uma profunda reflexão sobre o que é, de fato, a família espiritual. No meu entendimento, após viver todos esses processos, a família espiritual é aquela que nos apoia incondicionalmente, que nos vê crescer e que deseja o nosso bem, seja ela composta por parentes carnais, amigos, ou irmãos de fé. A família espiritual não se limita aos laços de sangue ou a um grupo religioso específico, mas a um conjunto de pessoas e energias que nos fortalecem espiritualmente.

Entretanto, esse reencontro com a nova família, com aqueles que realmente nos querem bem, envolve um processo interno complexo. É necessário atravessar um mergulho profundo em nós mesmos, enfrentar as sombras, medos e inseguranças que surgem, como a solidão durante as festas de fim de ano ou a sensação de abandono em momentos de fragilidade. Esses desconfortos psíquicos, como a solidão diária e a ausência de alguém ao nosso lado nos momentos difíceis, muitas vezes me amedrontavam. Durante dois anos consecutivos, vivi esse tipo de solidão. No entanto, foi nesse período que a arte se tornou uma ferramenta de autoconhecimento e resistência. Pintar, quando estava sozinho, me ajudou a canalizar essa solidão e a refletir sobre as questões mais profundas da minha existência. Foi um processo crucial que me afastou de vícios como o álcool e o crack, que tentavam preencher esse vazio existencial.

A arte, então, foi fundamental para me conectar com a espiritualidade de uma forma mais profunda. A espiritualidade, é o mergulho em si mesmo, ao contrário da religiosidade, que implica uma relação com o transcendente. Essa distinção me fez compreender que a minha prática espiritual não está vinculada a um grupo religioso específico, mas é uma expressão íntima e pessoal das vivências e sentimentos acumulados ao longo da minha jornada. Minha família espiritual se estende não só aos meus ancestrais carnais, mas também aos meus irmãos de axé, aos que compartilham comigo essa intuição vibrante e ativa, que se reflete no meu trabalho artístico. Em qualquer lugar do mundo, seja em Salvador, São Paulo, Campinas ou agora em Portugal, a minha família espiritual permanece viva e renovada, sempre pulsando e me guiando, criando e reafirmando meu caminho artístico e espiritual.

Essa conexão com a família espiritual, portanto, não se limita ao tempo ou ao espaço. Ela está sempre presente e se fortalece à medida que sou capaz de me abrir para ela. E, quando retornar a Salvador com minha filha Valentina, acredito que o axé se renovará ainda mais, trazendo uma nova energia, não apenas para mim, mas também para aqueles que fazem parte dessa rede espiritual e afetiva que se mantém viva, em constante transformação.

19. Que reflexões Mustafá suscita ao questionar onde o sagrado reside no ser humano?

O sagrado, para mim, está em cada passo que damos na vida, algo que aprendi com os povos de terreiro e com os ancestrais iorubás. A primeira grande reflexão que faço é que muitos de nós banalizamos práticas que antes eram profundamente sagradas, como comer, tomar banho, dormir, passar uma roupa ou até mesmo o simples ato de respeitar os mais velhos. Essas ações, que antes tinham um caráter de respeito profundo, hoje são feitas de forma automática, sem uma percepção de sua importância espiritual.

Poucos se atentam ao simples, como andar descalço e sentir a terra, olhar nos olhos de outra pessoa, abraçar alguém por mais de três segundos ou se conectar com a natureza. A natureza, com suas sutilezas, está sempre nos oferecendo sinais do sagrado – a aurora, o perfume das árvores pela manhã, a revoada dos pássaros. No entanto, como podemos descobrir o nosso sagrado se não conseguimos ler esses sinais que estão à nossa volta, a cada milésimo de segundo?

Eu me inspiro nesses sinais da natureza e em tudo o que é simples para criar minha arte. Embora minhas pinturas possam parecer didáticas, elas são reflexões sobre o cotidiano e sobre os ensinamentos dos Orixás, que nos convidam a refletir sobre nossa conduta moral, não apenas no contexto religioso, mas também no dia a dia. E quando falo de moralidade, não me refiro à moralidade imposta pelas igrejas ou por doutrinas externas, mas à moralidade daquilo que é genuíno, que respeita a vida, os outros e a própria espiritualidade.

Em muitos espaços que deveriam ser sagrados, como as casas de Candomblé, por exemplo, o sagrado foi abandonado ou, em muitos casos, nunca existiu de fato. Isso acontece quando o tempo sagrado é desrespeitado, e a vivência espiritual se perde. A espiritualidade exige um tempo, um espaço de respeito e reflexão, onde as coisas e as pessoas possam se reencontrar com sua verdadeira essência. Quando isso não acontece, o que resta são espaços vazios, sem conexão com a força sagrada que deveria ali habitar.

Resgatar esse sagrado, tanto no espaço religioso quanto no cotidiano, exige uma retomada da atenção, do respeito e da reflexão. Precisamos ser mais presentes, mais atentos ao que está à nossa volta e ao que nos conecta com o divino, seja na natureza, na convivência com os outros ou em nossa prática espiritual.


20. Em que aspectos a obra de Mustafá reafirma a relevância da cultura afro-brasileira no cenário global?

Minha obra reafirma a relevância da cultura afro-brasileira no cenário global ao explorar a profunda conexão entre os elementos sagrados, os mitos e as tradições que fundamentam a história dos povos afro-brasileiros. Busco abrir um caminho para a reflexão sobre essa cultura, não me limitando aos terreiros ou às casas religiosas, mas evidenciando que o Axé, as energias dos Orixás e as forças da natureza estão presentes no cotidiano, orientando-nos e nos conectando com nossos ancestrais. Para mim, as energias divinas não estão restritas a espaços ritualísticos, mas estão em constante movimento e interação conosco, nos proporcionando sinais e direcionamentos.

Através das minhas pinturas, falo tanto da leveza quanto da dureza da história dos povos afro-brasileiros. A dor da opressão, da discriminação, das violências e das perdas que esses povos enfrentaram, mas também das singelezas, das resistências e das civilizações que construíram ao longo da história. Eles não foram apenas vítimas da escravidão; também foram os construtores de uma cultura vibrante, repleta de filosofia, religiosidade, arte e ciência, que transformou o Brasil e continua a influenciar o mundo. A contribuição dos povos africanos trazidos para as Américas, através do tráfico negreiro, é imensa, tanto na formação cultural quanto na constituição da identidade dos países da América Latina. Eles foram responsáveis por um movimento civilizatório que ajudou a tornar o novo continente menos bárbaro do que a Europa medieval era na época da colonização.

Eu reafirmo essa cultura ao trazer à tona símbolos e signos que remetem diretamente a essa ancestralidade, como o oxê de Xangô, o Ofá de Oxóssi, a representação dos babalawos e das ialorixás, e outros elementos profundamente conectados com a tradição afro-brasileira. Quando retrato os porões dos navios negreiros ou o cavalo branco de Xangô, estou evocando uma história de resistência e superação que precisa ser constantemente lembrada. Além disso, minha pintura faz um exercício de redescoberta da africanidade, ao revisitar os mitos e os orixás. Quando represento o conto de Oxalá e seu opaxorô, ou quando desvendo Iansã se despindo de sua pele de búfalo, estou reafirmando o poder simbólico e a riqueza de uma tradição que foi muitas vezes silenciada, mas que, por meio da arte, ganha uma nova voz.

No cenário global, vejo a cultura afro-brasileira como um elo essencial para a construção de uma identidade universal mais inclusiva, consciente e respeitosa com as origens e as contribuições dos povos africanos. Minha obra visa desestabilizar narrativas coloniais e racistas, celebrando a resistência, a espiritualidade e a beleza dessa cultura que, embora tenha sido marginalizada e violentada, segue viva e pulsante em nossos corpos, em nossas tradições e na arte. A relevância dessa cultura, portanto, não está apenas no Brasil, mas em todo o mundo, como um ponto de referência para a humanidade redescobrir sua própria espiritualidade e suas raízes.

 


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