O Feitiço de Amor e
a Ética do Amor como Resistência
por André Mustafá
“O Feitiço de Amor” narra o romance envolvente entre Ogun e Oxum,
destacando a fluidez das águas doces ao contornar a pedra ferro e a parceria
para resfriar suas ferramentas. A pintura, explora harmoniosamente a interação
entre o masculino e o feminino, especialmente no sagrado espaço da cozinha,
onde segredos são revelados. A experiência sensorial de preparar e degustar
alimentos juntos transcende corpo e mente, repleta de elementos místicos, denominados
aqui como Feitiço.
No romance entre Ogun e Oxum, a complexidade das relações humanas é
ressaltada, refletindo as ideias de bell hooks sobre o amor como uma ética
essencial na luta política e social. Para hooks, o amor não é apenas um
sentimento romântico, mas uma força transformadora capaz de desafiar e
transcender estruturas de poder dominantes. Assim como Ogun e Oxum enfrentam
desafios e superam barreiras em sua jornada, as pessoas também lutam contra a
opressão e buscam a liberdade e a igualdade em suas vidas.
Ao relacionar as histórias dos Orixás com as reflexões de bell hooks sobre o amor e a resistência, ampliamos nossa compreensão sobre esses temas e reconhecemos a importância de cultivar relações baseadas na empatia, compaixão e solidariedade. Enquanto hooks nos convida a repensar o amor como uma prática diária de compromisso e cuidado mútuo, a jornada de Ogun e Oxum nos instiga a explorar como o amor pode inspirar a ação coletiva e a transformação social.
Portanto, é possível perceber como as ideias e práticas de bell hooks
ecoam na dinâmica entre Ogun e Oxum, destacando a importância do amor como uma
ferramenta de cura coletiva e resistência em um mundo marcado pela desigualdade
e injustiça. A interseção entre o amor, a solidão e a criatividade nos desafia
a repensar as formas de relacionamento e a reconhecer o poder transformador do
amor em nossas vidas e na sociedade como um todo.
DOAÇÃO
A cozinha é mais do que um simples espaço físico; é um
portal onde os sabores se entrelaçam com memórias e tradições, e onde a magia
do preparo dos alimentos transcende o mundano. Nesse santuário culinário,
Renata e eu encontramos uma conexão profunda não apenas com os ingredientes,
mas também com a essência do amor e da doação. Aprendemos juntos a apreciar não
apenas o resultado final, mas também o processo de criação, onde cada gesto é
uma expressão de cuidado e gratidão.
Em nossas jornadas gastronômicas, descobrimos que a
culinária não se limita apenas à satisfação do paladar; é também uma forma de
expressão cultural e espiritual. Através da preparação de comidas votivas para
os Orixás, Renata mergulhou ainda mais fundo na essência dos pratos e de seus
elementos, compreendendo a importância de alimentar não apenas o corpo, mas
também a alma. Essa prática nos conectou não apenas ao presente, mas também às
nossas ancestralidades, lembrando-nos da importância de honrar e celebrar
nossas origens.
Ao compartilhar momentos na cozinha, não apenas
experimentamos novos sabores, mas também fortalecemos os laços familiares e
afetivos. O aroma de um bom vinho português nos envolve enquanto observamos sua
cor e textura, mergulhando em seus aromas terciários. Enquanto eu decifro suas
notas ácidas ou adocicadas, Renata se deleita com histórias e juntos nos
perdemos na magia de um filme. Esses momentos simples, compartilhados em torno
da mesa, são lembranças preciosas que alimentam não apenas nosso corpo, mas
também nossa alma.
A cozinha é um espaço sagrado, onde cada ingrediente
se transforma em uma poção de amor e carinho, reforço mais uma vez, que é capaz
de envolver toda a família em seu calor reconfortante. É onde os filhos
pequenos aprendem os segredos ancestrais dos temperos, enquanto os mais velhos
compartilham histórias e experiências de vida. Na cozinha, unimos primos, tios
e amigos mais chegados, em um ritual de partilha e comunhão que transcende o
simples ato de cozinhar. É também um lugar de confissões e desabafos, onde as
emoções fluem livremente entre abraços e sorrisos. O constante fluxo de água e
fogo em nossas mãos, cozinhando, limpando e renovando, confere à cozinha uma
aura mágica, onde aprendizes de feitiçaria descobrem o poder transformador dos
sabores e dos afetos.
Antes mesmo de adentrarmos na cozinha, há o
encantamento da feira livre, onde pequenos produtores compartilham não apenas
seus produtos, mas também suas histórias, humores e alegrias. Nesse espaço
pulsante, eles se encontram, se alegram, se divertem e, por vezes, até brigam.
É ali que podemos descobrir histórias genuínas sobre os alimentos, assim como
curiosidades e segredos esquecidos que permeiam suas origens. As ervas, por
exemplo, são repletas de narrativas, e é na feira que encontramos os sábios
senhores e senhoras que elaboram seus preparados mágicos, como molhos de
pimenta que invocam o amor ou afastam a má sorte. A feira possui um dicionário
próprio, perceptível apenas aos mais atentos, que decifram essas mensagens
ocultas e retornam às suas cozinhas com a essência dos alimentos, prontos para
transformá-los em experiências sensoriais únicas.
Você já teve o privilégio de receber um café da manhã
na cama? Ou ser surpreendido com um jantar ou almoço de domingo preparado por
alguém que você ama? Esses gestos delicados vão além de simples refeições; são
manifestações íntimas de compromisso e carinho. A comida, além de saciar nossos
corpos, nos transporta para um universo de memórias, especialmente aquelas da
nossa infância. Quando, na vida adulta, conseguimos conquistar o coração de
alguém ao preparar magicamente um prato que remete a tempos passados, é como se
despertássemos emoções profundas: lágrimas, sorrisos, abraços apertados,
histórias quase esquecidas emergindo do silêncio. É uma conexão que transcende
o paladar e atinge o âmago do relacionamento, seja fortalecendo os laços ou até
mesmo marcando o início de uma despedida.
Mas no ato de preparar os alimentos, há uma troca de
olhares, pequenas porções sendo oferecidas na boca, onde os lábios se umedecem
sutilmente, ou as mãos se unem ou se lambuzam com sabores mais picantes... a
narrativa da comida se transforma. É um momento de conexão íntima, onde gestos
simples transmitem afeto e cuidado, criando memórias que se entrelaçam com os
sabores e aromas.
No entanto, quando estamos enfermos, a comida assume
um novo significado. Nesse momento, é preparada com amor e atenção pelos mais
velhos, com menos sal e condimentos, priorizando o conforto e a recuperação.
Essas refeições se tornam símbolos de carinho e cuidado, proporcionando alívio
e fortalecimento em tempos difíceis. Em contraste, em ambientes formais, como
eventos ou jantares de negócios, a comida adquire um caráter mais refinado e
cerimonioso, refletindo as normas e expectativas sociais do contexto em que
estamos inseridos.
O ato de rezar sobre os alimentos é uma prática que,
infelizmente, parece estar caindo em desuso. No entanto, rezar não se resume
simplesmente a fazer uma oração; é muito mais profundo do que isso. Rezar sobre
os alimentos é um ato de conexão espiritual, uma forma de realinhar sua energia
original ou dissipar possíveis energias negativas que possam ter sido
absorvidas pelos alimentos em diversos locais que passaram antes de chegar
em nossas cozinhas. Em muitas tradições,
a conversa com os alimentos é uma maneira de infundir neles bem-estar e
positividade, garantindo que, ao serem consumidos, possam nutrir não apenas o
corpo, mas também a alma.
Os alimentos, segundo essas tradições, são seres vivos
dotados de suas próprias energias e axés, que podem ser potencializados para
promover a cura e até mesmo revelar enfermidades que tentam se ocultar. Ao
rezar sobre os alimentos, reconhecemos sua natureza sagrada e a importância de
nutrir não apenas o corpo físico, mas também o espírito. É um gesto de gratidão
pela abundância da natureza e uma maneira de honrar os ciclos da vida, desde a
semeadura até a colheita, e finalmente, à mesa.
O feitiço do amor no ato de cozinhar é a magia que
envolve a preparação dos alimentos com intenção, cuidado e amor. É o gesto de
dedicar tempo e energia para criar refeições que não apenas nutrem o corpo, mas
também alimentam a alma. Ao cozinhar com amor, estamos infundindo cada
ingrediente com positividade e intenção, tornando a comida mais do que apenas
uma mistura de sabores e nutrientes. É como se cada prato se tornasse um
veículo de amor e conexão, transmitindo cuidado e afeto para aqueles que o
consomem. O feitiço do amor no ato de cozinhar é uma maneira de celebrar os
laços familiares, fortalecer os relacionamentos e criar memórias duradouras em
torno da mesa. É uma forma de expressar amor e gratidão por meio da comida,
transformando cada refeição em um momento de magia e encantamento.
Ogun é o orixá do ferro, da tecnologia, da guerra e da
agricultura. Ele é muitas vezes invocado para abençoar as ferramentas usadas na
agricultura e na preparação dos alimentos. Sua energia está ligada à força
física, à determinação e ao trabalho árduo. Ogun é reverenciado por sua
habilidade em transformar materiais brutos em objetos úteis e, por extensão, em
alimentos que sustentam a vida.
Oxum, por sua vez, é a divindade das águas doces, da
fertilidade, do amor e da prosperidade. Ela é frequentemente associada à
doçura, à sensualidade e à generosidade. Oxum é honrada nas cerimônias de
Candomblé com oferendas de alimentos, especialmente doces e frutas, como forma
de agradecimento e para atrair sua bênção e proteção.
Portanto, Ogun e Oxum representam, de certa forma, a
união entre o trabalho árduo e a doçura, entre a força e a gentileza, que são
aspectos importantes do ato de cozinhar e compartilhar alimentos. Assim como
esses orixás são reverenciados em rituais que envolvem a preparação e a oferta
de alimentos, eles também podem ser vistos como arquétipos que inspiram e
abençoam as atividades culinárias do dia a dia.
Se, após explorarmos todos os mistérios e encantos que permeiam a arte da culinária, alguém ainda desconsiderar sua importância, mostrando-se inclinado apenas ao fast food, trata-se, possivelmente, de alguém que enxerga a comida como mera necessidade de saciar a fome imediata, negligenciando a riqueza de experiências sensoriais e culturais que ela pode proporcionar. É como se estivesse desesperadamente tentando preencher um vazio, sem se permitir apreciar os momentos que alimentam não só o corpo, mas também a alma.
Neste contexto, o legado do renomado historiador e pesquisador Manuel Querino, que dedicou sua vida ao estudo da cultura afro-brasileira e foi pioneiro em pensar uma cozinha brasileira, é uma fonte valiosa de inspiração e sabedoria. Querino não só resgatou saberes ancestrais, mas também destacou o valor sagrado dos alimentos, especialmente os preparados para rituais do candomblé. Sua abordagem pioneira mergulhou nas raízes culturais e espirituais que dão vida aos pratos afro-brasileiros.
Manuel Querino é autor de diversas obras, incluindo "A Raça Africana e os Seus Costumes na Bahia", onde aborda aspectos da culinária afro-brasileira e sua relação com a história e a cultura do povo baiano. Seu trabalho serviu como base para muitos estudos posteriores sobre a gastronomia afro-brasileira, oferecendo uma visão profunda e abrangente sobre a importância dos alimentos na construção da identidade cultural do Brasil.
Ao contrário da efemeridade e superficialidade do fast food, o legado de Manuel Querino nos convida a uma jornada de reconexão com nossa história, nossas tradições e nossa identidade. Cada prato é um testemunho da herança cultural e da resistência do povo afro-brasileiro, uma celebração da diversidade e da riqueza de nossa culinária. É um convite para apreciar não apenas o sabor, mas também a história e a alma da comida afro-brasileira, onde cada ingrediente é carregado de significado e cada refeição é uma homenagem à nossa ancestralidade.
Essa
experiência transformadora proporcionou a André Mustafá um mergulho profundo na
riqueza cultural e gastronômica do Brasil. Inspirado pela história de Manuel
Querino e pela tradição da culinária afro-brasileira, Mustafá viu-se imerso em
um universo de sabores, aromas e tradições ancestrais. Sua jornada como
arte-educador no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia não se limitou apenas ao
ensino das artes, mas também se estendeu à promoção e valorização da cultura
culinária afro-brasileira. O mesmo fez, ao compartilhar seus conhecimentos e
vivências no Instituto Padre Haroldo, em Campinas interior de São Paulo,
Mustafá não apenas ensinou receitas, mas também abriu portas para uma
compreensão mais profunda da herança cultural e da importância da gastronomia
como expressão da identidade nacional a outros professores, arte educadores e
alunos do Instituto em oficinas de gastronomia. Seu legado das artes perpassa
pincéis, canetas e tintas... pois ele acredita que sabores se fundem a cores, texturas, formas e volumes, criando também
uma experiência sensorial única que convida a todos a participarem e explorarem
ativamente as raízes e os sabores da nossa terra como se fosse um evento artístico
único.
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André Mustafá, Portugal (Aver-o-Mar) maio de 2024-05-12
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