ONDE NASCE O CAÇADOR?
Existe uma frase que ficou muito conhecida entre os adeptos
do Candomblé mais tradicionais do Brasil: 'Onde Ogun tira o pé, Oxossi coloca'.
Vamos pensar um pouco sobre essa frase e descobrir questões inerentes à pintura
de André Mustafá. Se mudássemos um pouco a frase para: 'onde o professor tira o
pé, o aluno coloca', será que faria sentido entre os Orixás Ogun, o mais velho,
e Oxossi, o mais novo? Será que faria sentido pensar que o irmão mais velho
Ogun pode ensinar e passar ensinamentos para seu irmão mais novo, Oxossi? No
Brasil, o candomblé criou essas irmandades e Ogun e Oxossi se tornaram irmãos.
Então, vamos pensar primeiro na relação professor-aluno? Pode ser?
Essa é uma abordagem interessante dessa frase, que explora
sua relação com a dinâmica do aprendizado e do conhecimento. Podemos considerar
a ideia de que o conhecimento não é passivamente transmitido, mas sim
construído através de um processo ativo de interação entre professor e aluno:
uma caminhada! No contexto educacional, o professor desempenha o papel de guia
nesse caminho, nessa trilha ou trilho, e é um facilitador do aprendizado,
fornecendo informações, orientações e ferramentas para os alunos explorarem e
compreenderem os conteúdos. No entanto, é fundamental que os alunos participem
ativamente desse processo, questionando, refletindo e aplicando o conhecimento
de forma crítica e criativa. E, no caso de Oxossi, nosso 'aluno', ele é muito
atento e observador, como é de costume e essência sua.
A frase sugere que os alunos assumem a responsabilidade por
seu próprio aprendizado, explorando e aprofundando os conceitos apresentados pelo
professor. Eles não apenas absorvem passivamente o conhecimento, mas também o
reinterpretam, ampliam e aplicam de acordo com suas experiências, perspectivas
e interesses individuais. É o que Oxossi vai fazer: ser o caçador de uma só
flecha. Cria seus próprios processos de reinterpretação do mundo que o cerca e
desenvolve personalidade e, com isso, autonomia para saber para onde vai e o
que quer.
A importância da autonomia do aluno, incentivando-o a se
envolver ativamente no processo de aprendizado, questionando, explorando e
construindo seu próprio entendimento do mundo. Ao mesmo tempo, destaca a
responsabilidade do professor em criar um ambiente de aprendizado estimulante e
colaborativo, onde os alunos se sintam incentivados a assumir um papel ativo em
sua própria educação. Foi o que Ogun fez: retirou Oxossi de um local estático,
confortável, que é a sala de aula, e o colocou para caminhar, sentir seu corpo
por completo e os espaços com todas as suas vibrações, cores, texturas,
odores... para desenvolver habilidades sensoriais que nem o professor pode
ensinar.
Essa ideia da caminhada é fascinante e está alinhada com
abordagens educacionais mais contemporâneas que enfatizam a aprendizagem
experiencial, sensorial e prática. Ao incorporar elementos do ambiente físico e
das experiências sensoriais no processo de aprendizado, os alunos podem
expandir sua compreensão e conexão com o mundo ao seu redor de uma forma mais
holística (compreensão integral dos fenômenos) e significativa de um todo mais
complexo e muito mais surpreendente.
Então, pensei em uma pensadora contemporânea que poderia
enriquecer essa discussão, que é Rebecca Solnit. Solnit é uma escritora e
ativista que explorou temas relacionados ao espaço, à paisagem e à experiência
humana em suas obras. Em seus livros, como 'A Arte de Caminhar', ela aborda
como nossos ambientes influenciam nossa percepção, cognição e experiência
pessoal. Solnit fala do caminhar para pensar, meditar nas coisas, como
atividade visual para ver paisagens, caminhar como ato político, e que o andar
a pé da noção de espaço, conecta ambientes e o espaço entre eles. Ao falar
sobre caminhar, a própria autora relata que ao escrever sobre caminhadas foi
caminhar, pois uma mesa não era lugar para se escrever sobre caminhadas.
No contexto da aprendizagem, Solnit poderia nos ajudar a
refletir sobre como a experiência sensorial do ambiente físico pode ser
integrada ao processo educacional para enriquecer o aprendizado e promover o
desenvolvimento pessoal dos alunos. Sua abordagem poética e filosófica nos
convida a reconsiderar nossa relação com o mundo natural e a redescobrir o
potencial transformador das experiências sensoriais.
Para desenvolver essa ideia, poderíamos explorar estratégias
práticas, como a realização de aulas ao ar livre, atividades de exploração
sensorial, práticas de mindfulness (Mindfulness significa viver plenamente
momento a momento, com consciência de tudo o que está a acontecer nas nossas
vidas) e meditação, ou até mesmo projetos de arte e design que envolvam a interação
com o ambiente físico. Essas abordagens podem ajudar os alunos a desenvolver
uma maior consciência de si mesmos e do mundo ao seu redor, estimulando a
curiosidade, a criatividade e a empatia.
Mas como é que Ogun, na qual todos nós sabemos (ou pelo menos
achamos que sabemos), é um Orixá bruto e violento, pode ofertar um aprendizado
para o seu irmão mais novo, Oxossi, em uma caminhada, ou em passeios diários
que possibilitem a ampliação de repertório de Oxossi: o 'aluno' na qual
potencialize o mesmo a entender e compreender os pequenos ruídos da mata, como
a caça se movimenta, as pequenas frações de mudanças do tempo, dos raios do
sol, entender as conversas dos pássaros, a sutileza do orvalho da madrugada,
quais plantas servem como remédio e quais outras servem para envenenamento e
assim colocar na ponta de sua única flecha... Como pode Ogun esse homem severo
e supostamente insensível construir ou possibilitar em Oxossi essa inteireza
holística?
A frase 'Onde Ogun tira o pé, Oxossi coloca' sugere uma
relação de complementaridade e aprendizado entre os dois Orixás, mesmo que
tradicionalmente sejam vistos como diferentes em suas características. Ogun,
conhecido pela sua força e determinação, pode oferecer a Oxossi, seu irmão mais
novo, lições valiosas sobre a conexão com a natureza e a habilidade de caça.
Apesar de Ogun ser associado à brutalidade, sua presença na mata pode ensinar a
Oxossi não apenas sobre técnicas de caça, mas também sobre o respeito pela
terra e pela vida selvagem. Assim, Ogun pode ser visto como um guia para Oxossi
na compreensão dos segredos e nuances da floresta, contribuindo para sua
integridade e conhecimento holístico.
Essa interpretação nos leva a refletir sobre como os papéis e
as características dos Orixás podem ser mais complexos do que inicialmente
parecem. Ogun, mesmo sendo visto como severo e insensível, pode desempenhar um
papel fundamental no desenvolvimento de Oxossi, mostrando que o aprendizado
pode vir de fontes inesperadas e que a complementaridade entre diferentes
aspectos da natureza é essencial para a harmonia e o equilíbrio do mundo.
Fiquei aqui pensando que o livro "Ostra Feliz Não Faz
Pérolas", de Rubem Alves, aborda questões relacionadas ao ensino e aprendizado
de uma forma poética e reflexiva, apresentando uma série de crônicas que
exploram temas como educação, criatividade, amor, poesia e filosofia, nos
convida a repensar a maneira como encaramos a educação e o processo de
aprendizado. Ele destaca a importância de cultivar a curiosidade, a imaginação
e a sensibilidade, e sugere que o verdadeiro aprendizado acontece quando somos
capazes de olhar o mundo com olhos de criança, com espanto e encantamento.
Podemos explorar como o contato com a natureza e a observação
atenta do ambiente pode ser ferramentas poderosas no processo de ensino e
aprendizado. Assim como a ostra transforma o grão de areia indesejado em uma
pérola valiosa, não somente os alunos podem transformar suas experiências
cotidianas e conexões com a natureza em aprendizados significativos e
enriquecedores, mas também os professores nesse jogo divertido que é o
aprender. Então, compreendemos que a natureza é fundamental nesse processo de
troca e aprofundamento entre professor e aluno, Ogun e Oxossi.
Podemos afirmar que a ideia de que tanto o aluno quanto o
professor são beneficiados pelo contato com a natureza e pelas reflexões mútuas
é bastante válida. No contexto da relação entre Ogun e Oxossi, podemos imaginar
que, à medida que Ogun acompanha Oxossi em suas jornadas pela mata e se envolve
em diálogos significativos com seu irmão mais novo, ele também é impactado por
essas experiências. A brutalidade associada a Ogun pode ser suavizada à medida
que ele se permite mergulhar na serenidade e na harmonia da natureza,
encontrando uma nova perspectiva sobre sua própria essência e propósito. Assim
como Oxossi amplia seu repertório pessoal e desenvolve uma compreensão mais
profunda do mundo ao seu redor, Ogun também pode encontrar espaço para
crescimento pessoal e transformação.
Mas também nasce outra reflexão a partir do conteúdo do livro
e da fala de Rubem Alves, que diz: “A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter
dentro de si um grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si
mesma: ‘Preciso envolver esta areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa
que lhe tire as pontas...’. Ostras felizes não fazem pérolas. Pessoas felizes
não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte,
surge sempre de uma dor. Não é preciso que seja uma dor doída. Por vezes, a dor
aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade. Este livro é repleto
de areias pontudas que machucam, mas que fazem da dor uma razão para sempre
continuar. Qualquer página deste livro é um começo e um fim.” Podemos dizer,
então, que a função de Ogun, além de proporcionar a ampliação do repertório de
Oxossi, é colocar seu “aluno” em situações de risco, desconforto e pressão
intelectual e prática, que o testem e o levem a produzir e interpretar questões
ainda mais profundas do que o mergulho que o “aluno” acha que pode dar? Ou
seja, o avanço requer uma certa brutalidade e, nisso, Ogun tem um caminho
pleno?
Podemos, então fazer essa conexão entre a função de Ogun e a
citação de Rubem Alves sobre a ostra e a formação da pérola. Assim como a ostra
precisa do grão de areia para criar a pérola, o aprendizado muitas vezes surge
de situações desafiadoras e dolorosas. Ogun, com sua força e determinação, pode
colocar Oxossi em situações de risco e desconforto, desafiando-o a superar
obstáculos e expandir seus limites. Essas experiências podem ser dolorosas, mas
também são essenciais para o crescimento e desenvolvimento pessoal. Portanto,
Ogun desempenha um papel fundamental ao proporcionar a Oxossi a oportunidade de
enfrentar desafios e pressões que o levam a produzir e interpretar questões
mais profundas, impulsionando assim seu avanço intelectual e prático.
Essa dinâmica ilustra como o ensino e o aprendizado não são
processos unilaterais, mas sim interações complexas que envolvem trocas
constantes entre professor e aluno. À medida que compartilham experiências,
conhecimentos e reflexões, ambos os envolvidos têm a oportunidade de se
enriquecer e evoluir em sua jornada pessoal e intelectual.
Nascer um caçador não se resume apenas à aquisição de
habilidades técnicas ou ao domínio das ferramentas necessárias para a caça. Ser
um verdadeiro caçador implica em desenvolver uma profunda conexão com a
natureza e com os elementos que a compõem. Para se tornar um caçador, é
necessário compreender os ritmos da mata, aprender com a sabedoria dos animais,
cultivar a paciência e a observação aguçada. Além disso, é preciso desenvolver
um profundo respeito pelo ambiente e pelos seres que nele habitam,
reconhecendo-se como parte integrante desse ecossistema complexo. O mesmo
podemos relacionar à cidade como essa grande 'mata' ou selva em que existem perigos
e soluções em que nós caçadores contemporâneos devemos nos habilitar para não
perdermos a caça e nem tão pouco fazer da vida um algo sufocante, quente e sem
sabor.
Assim como um caçador se prepara para adentrar uma densa
floresta em busca de sua presa, o habitante da cidade grande enfrenta
diariamente os desafios de uma selva urbana. Nessa 'floresta de pedra', cada
esquina e cada rua podem apresentar seus próprios perigos e desafios, exigindo
do indivíduo habilidades de sobrevivência, astúcia e adaptabilidade.
Nesse contexto, o verdadeiro caçador moderno não é aquele que
domina apenas técnicas de caça tradicionais, mas sim aquele que sabe navegar
pelas intricadas ruas da cidade, decifrando seus códigos e interagindo com sua
diversidade de habitats e criaturas. Ele desenvolve uma relação autêntica e
harmoniosa com esse ambiente urbano, compreendendo seus ritmos e respeitando
sua complexidade.
Portanto, o nascimento de um caçador contemporâneo vai além
da simples aquisição de habilidades técnicas. Ele se manifesta na imersão em um
contínuo processo de aprendizado e adaptação à selva urbana, onde cada desafio
enfrentado representa uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento
pessoal. É crucial compreendermos isso prontamente, para evitar nos tornarmos a
presa ou cairmos na armadilha da complacência expressa na frase: "um dia
da caça, outro dia do caçador".
Foi assim que nasceu essa pintura, de uma vivência minha em
São Paulo e que anos depois se tornou esse belo quadro. Forte abraço a todos os
professores e alunos, todos os pais e filhos, a todos os irmãos mais velhos e
irmãos mais novos que sacaram o brilho do aprendizado.
By André Mustafá, Portugal /Aver-o-Mar 2024
Bibliografia
ALVES, Rubem. - A Ostra Feliz Não Faz Pérolas. Papirus Editora, 2012.
SOLNITt, Rebecca. - A Arte de Caminhar. Martins Fontes, 2017.
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