QUANDO NASCE UM CAÇADOR por André MUSTAFÁ


Título: Quando nasce um caçador
Exposição: Fronteiras com os Orixás; Só se encontra com Deus nos Extremos
Técnica: caneta esferográfica
Artista: André Mustafá
Dimensões originais: 297x210mm
Ano de conclusão: 23 de agosto 2019
Local de realização: Póvoa de Varzim - Portugal

"Me vejo muito nessa pintura, ensinando os passos a minha filha Valentina Mustafá. Caminhando juntos, conversando, vendo, descobrindo e se descobrindo juntos. Aqui consigo ver os primeiros brotos de uma grande árvore que será Valentina... Ela também observando o seu pai envelhecer "

"Um caçador nasce de muito silêncio e observação. Um caçador nasce do bom senso. Um caçador nasce das ações e palavras acertivas. Um caçador nasce da paciência. Um caçador nasce de firmes convicções. Um caçador nasce na crença no caminho. Um caçador nasce no desejo de nutrir a família. Um caçador nasce quando sua flecha não está apontada para a guerra. . . É preciso tempo". "Fiquei um bom tempo observando essa pintura e vi que fala de coisas que tenho me comprometido por alguns anos com diversas pessoas. . . Essa pintura fala : -Do exemplo dos mais velhos. -De irmandade. -De vínculo. -De caminhada e aprendizado. -De referências -De formação educativa " A. Mustafá A pintura "Quando nasce um caçador", trará um ditado afro-brasileiro dos mais antigos que diz: "Quando Ogun tira o pé, Oxossi coloca", informando a relação inseparável desses dois Orixás. É nesse momento que Ogun, o irmão mais velho ensina Oxossi caçar. Ogun prepara esse caminho do caçador e revela o cuidado que tem com seu irmão mais novo, mesmo sabendo que o caminho se faz caminhando. O que vemos desenhado na pintura é uma perna de uma criança, colocando o pé na pegada de um pé de um adulto. Na mão da criança ou desse jovem adolescente tem um arco e flecha e envolto em sua perna tecidos com estampas com desenhos triangulares (identificando qual é a sua Comunidade ), o mesmo se observa no tornozelo do pé do adulto o que indica que são da mesma família.
Na pintura, a direita, no pé do adulto dessem pequenos fios ou fitas de cor verde que remetem as folhas novas da árvore do dendezeiro que os #iorubás chamaram a folha de "mariwô". Essa folha é tão sagrada para o #Orixá #Ogun que o próprio veste-se com Ela.
Assim a pintura trata do adolescente #Oxossi e do adulto #Ogun.

Para então se falar do nascimento do caçador é preciso que fale de seu iniciador: Ogun. Esse Orixá em seus primórdios tem a característica de ser um inventor. Tudo que está associado a invenções, criações e novas tecnologias está associado a este Orixá. Antes mesmo de Ogun está associado a guerra, o mesmo está no princípio relacionado a pesquisa de observação. Ogun cientista de seu tempo e incansável observador da natureza. Ogun é a força da observação dos astros, do nascimento do dia, da escuridão e mistérios da noite, dos diferentes ventos e climas, quando se planta e quando se colhe. . . É Ele que iniciou a criação dos ritos funerários, que entendeu a expeiencia de envelhecer . . .adoecer e morrer. Sabe dos segredos dos #babáeguns e como conversar com estes. Dos mistérios do parto e dos encantamentos para proteger o feto e os bebês nos primeiros anos de vida.

Ogun é terra. Barro preto, pedra ferro...é o caçador de pedras e manipulador do fogo. Ogun descobre a fundição dos metais...retira impurezas... seleciona, separa, redefinem suas durezas e matérias...descobre o cobre, níquel, bronze, ferro, titânio. .. inventa as ferramentas de agricultura que #Oxaguiã tanto necessita. Presenteia #Iansã com o cobre e é parceiro de #Exú na abertura dos caminhos e na guarda das casas.

Ogun antes de ser o temível guerreiro, descobre como caçar, como cuidar de animais e arar a terra. Assim a pintura em questão revela esse Orixá como um #Olukó ( professor em língua #iorubá) que passa seus ensinamentos de #tobiodé, para #Oxossi seu irmão mais novo - aprendiz.

Agora tentaremos falar de Oxossi.
Os contos (#intas como são chamados em língua iorubá ), mencionam que Oxossi é filho de #Oxalá e #Iemanjá, podemos pensar que Oxossi tem a sabedoria do silêncio que vem de seu Pai e a maternagem quase que possessiva de sua Mãe. Assim temos em Oxossi as qualidades da paciência e do desejo de reunir a família para juntos crescer e prosperar. Oxossi então é o #Orixá que no #Brasil reúne todas as nações que foram escravisadas e cria a família; a nova nação - o #candomblé. Ele que reúne em um só panteão todos os Orixás; une em uma grande roda de #xire (festa) e traz a possibilidade de que todas as nações africanas em uma grande família espiritual possa através dos cânticos, danças e musicalidade se expressar, se comunicar e assim se compreender melhor. Oxossi é o patrono do candomblé reunido toda a família para a celebração da vida e de manter as histórias e tradições de todos os #ancestrais. Esse Orixá que refina e reequilibra os conhecimentos de seu professor #Ogun, trazendo a nova harmonia aos diversos grupos étnicos africanos que vieram para o Brasil.

 

ONDE NASCE O CAÇADOR?

Existe uma frase que ficou muito conhecida entre os adeptos do Candomblé mais tradicionais do Brasil: 'Onde Ogun tira o pé, Oxossi coloca'. Vamos pensar um pouco sobre essa frase e descobrir questões inerentes à pintura de André Mustafá. Se mudássemos um pouco a frase para: 'onde o professor tira o pé, o aluno coloca', será que faria sentido entre os Orixás Ogun, o mais velho, e Oxossi, o mais novo? Será que faria sentido pensar que o irmão mais velho Ogun pode ensinar e passar ensinamentos para seu irmão mais novo, Oxossi? No Brasil, o candomblé criou essas irmandades e Ogun e Oxossi se tornaram irmãos. Então, vamos pensar primeiro na relação professor-aluno? Pode ser?

Essa é uma abordagem interessante dessa frase, que explora sua relação com a dinâmica do aprendizado e do conhecimento. Podemos considerar a ideia de que o conhecimento não é passivamente transmitido, mas sim construído através de um processo ativo de interação entre professor e aluno: uma caminhada! No contexto educacional, o professor desempenha o papel de guia nesse caminho, nessa trilha ou trilho, e é um facilitador do aprendizado, fornecendo informações, orientações e ferramentas para os alunos explorarem e compreenderem os conteúdos. No entanto, é fundamental que os alunos participem ativamente desse processo, questionando, refletindo e aplicando o conhecimento de forma crítica e criativa. E, no caso de Oxossi, nosso 'aluno', ele é muito atento e observador, como é de costume e essência sua.

A frase sugere que os alunos assumem a responsabilidade por seu próprio aprendizado, explorando e aprofundando os conceitos apresentados pelo professor. Eles não apenas absorvem passivamente o conhecimento, mas também o reinterpretam, ampliam e aplicam de acordo com suas experiências, perspectivas e interesses individuais. É o que Oxossi vai fazer: ser o caçador de uma só flecha. Cria seus próprios processos de reinterpretação do mundo que o cerca e desenvolve personalidade e, com isso, autonomia para saber para onde vai e o que quer.

A importância da autonomia do aluno, incentivando-o a se envolver ativamente no processo de aprendizado, questionando, explorando e construindo seu próprio entendimento do mundo. Ao mesmo tempo, destaca a responsabilidade do professor em criar um ambiente de aprendizado estimulante e colaborativo, onde os alunos se sintam incentivados a assumir um papel ativo em sua própria educação. Foi o que Ogun fez: retirou Oxossi de um local estático, confortável, que é a sala de aula, e o colocou para caminhar, sentir seu corpo por completo e os espaços com todas as suas vibrações, cores, texturas, odores... para desenvolver habilidades sensoriais que nem o professor pode ensinar.

Essa ideia da caminhada é fascinante e está alinhada com abordagens educacionais mais contemporâneas que enfatizam a aprendizagem experiencial, sensorial e prática. Ao incorporar elementos do ambiente físico e das experiências sensoriais no processo de aprendizado, os alunos podem expandir sua compreensão e conexão com o mundo ao seu redor de uma forma mais holística (compreensão integral dos fenômenos) e significativa de um todo mais complexo e muito mais surpreendente.

Então, pensei em uma pensadora contemporânea que poderia enriquecer essa discussão, que é Rebecca Solnit. Solnit é uma escritora e ativista que explorou temas relacionados ao espaço, à paisagem e à experiência humana em suas obras. Em seus livros, como 'A Arte de Caminhar', ela aborda como nossos ambientes influenciam nossa percepção, cognição e experiência pessoal. Solnit fala do caminhar para pensar, meditar nas coisas, como atividade visual para ver paisagens, caminhar como ato político, e que o andar a pé da noção de espaço, conecta ambientes e o espaço entre eles. Ao falar sobre caminhar, a própria autora relata que ao escrever sobre caminhadas foi caminhar, pois uma mesa não era lugar para se escrever sobre caminhadas.

No contexto da aprendizagem, Solnit poderia nos ajudar a refletir sobre como a experiência sensorial do ambiente físico pode ser integrada ao processo educacional para enriquecer o aprendizado e promover o desenvolvimento pessoal dos alunos. Sua abordagem poética e filosófica nos convida a reconsiderar nossa relação com o mundo natural e a redescobrir o potencial transformador das experiências sensoriais.

Para desenvolver essa ideia, poderíamos explorar estratégias práticas, como a realização de aulas ao ar livre, atividades de exploração sensorial, práticas de mindfulness (Mindfulness significa viver plenamente momento a momento, com consciência de tudo o que está a acontecer nas nossas vidas) e meditação, ou até mesmo projetos de arte e design que envolvam a interação com o ambiente físico. Essas abordagens podem ajudar os alunos a desenvolver uma maior consciência de si mesmos e do mundo ao seu redor, estimulando a curiosidade, a criatividade e a empatia.

Mas como é que Ogun, na qual todos nós sabemos (ou pelo menos achamos que sabemos), é um Orixá bruto e violento, pode ofertar um aprendizado para o seu irmão mais novo, Oxossi, em uma caminhada, ou em passeios diários que possibilitem a ampliação de repertório de Oxossi: o 'aluno' na qual potencialize o mesmo a entender e compreender os pequenos ruídos da mata, como a caça se movimenta, as pequenas frações de mudanças do tempo, dos raios do sol, entender as conversas dos pássaros, a sutileza do orvalho da madrugada, quais plantas servem como remédio e quais outras servem para envenenamento e assim colocar na ponta de sua única flecha... Como pode Ogun esse homem severo e supostamente insensível construir ou possibilitar em Oxossi essa inteireza holística?

A frase 'Onde Ogun tira o pé, Oxossi coloca' sugere uma relação de complementaridade e aprendizado entre os dois Orixás, mesmo que tradicionalmente sejam vistos como diferentes em suas características. Ogun, conhecido pela sua força e determinação, pode oferecer a Oxossi, seu irmão mais novo, lições valiosas sobre a conexão com a natureza e a habilidade de caça. Apesar de Ogun ser associado à brutalidade, sua presença na mata pode ensinar a Oxossi não apenas sobre técnicas de caça, mas também sobre o respeito pela terra e pela vida selvagem. Assim, Ogun pode ser visto como um guia para Oxossi na compreensão dos segredos e nuances da floresta, contribuindo para sua integridade e conhecimento holístico.

Essa interpretação nos leva a refletir sobre como os papéis e as características dos Orixás podem ser mais complexos do que inicialmente parecem. Ogun, mesmo sendo visto como severo e insensível, pode desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento de Oxossi, mostrando que o aprendizado pode vir de fontes inesperadas e que a complementaridade entre diferentes aspectos da natureza é essencial para a harmonia e o equilíbrio do mundo.

Fiquei aqui pensando que o livro "Ostra Feliz Não Faz Pérolas", de Rubem Alves, aborda questões relacionadas ao ensino e aprendizado de uma forma poética e reflexiva, apresentando uma série de crônicas que exploram temas como educação, criatividade, amor, poesia e filosofia, nos convida a repensar a maneira como encaramos a educação e o processo de aprendizado. Ele destaca a importância de cultivar a curiosidade, a imaginação e a sensibilidade, e sugere que o verdadeiro aprendizado acontece quando somos capazes de olhar o mundo com olhos de criança, com espanto e encantamento.

Podemos explorar como o contato com a natureza e a observação atenta do ambiente pode ser ferramentas poderosas no processo de ensino e aprendizado. Assim como a ostra transforma o grão de areia indesejado em uma pérola valiosa, não somente os alunos podem transformar suas experiências cotidianas e conexões com a natureza em aprendizados significativos e enriquecedores, mas também os professores nesse jogo divertido que é o aprender. Então, compreendemos que a natureza é fundamental nesse processo de troca e aprofundamento entre professor e aluno, Ogun e Oxossi.

Podemos afirmar que a ideia de que tanto o aluno quanto o professor são beneficiados pelo contato com a natureza e pelas reflexões mútuas é bastante válida. No contexto da relação entre Ogun e Oxossi, podemos imaginar que, à medida que Ogun acompanha Oxossi em suas jornadas pela mata e se envolve em diálogos significativos com seu irmão mais novo, ele também é impactado por essas experiências. A brutalidade associada a Ogun pode ser suavizada à medida que ele se permite mergulhar na serenidade e na harmonia da natureza, encontrando uma nova perspectiva sobre sua própria essência e propósito. Assim como Oxossi amplia seu repertório pessoal e desenvolve uma compreensão mais profunda do mundo ao seu redor, Ogun também pode encontrar espaço para crescimento pessoal e transformação.

Mas também nasce outra reflexão a partir do conteúdo do livro e da fala de Rubem Alves, que diz: “A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si mesma: ‘Preciso envolver esta areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas...’. Ostras felizes não fazem pérolas. Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor. Não é preciso que seja uma dor doída. Por vezes, a dor aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade. Este livro é repleto de areias pontudas que machucam, mas que fazem da dor uma razão para sempre continuar. Qualquer página deste livro é um começo e um fim.” Podemos dizer, então, que a função de Ogun, além de proporcionar a ampliação do repertório de Oxossi, é colocar seu “aluno” em situações de risco, desconforto e pressão intelectual e prática, que o testem e o levem a produzir e interpretar questões ainda mais profundas do que o mergulho que o “aluno” acha que pode dar? Ou seja, o avanço requer uma certa brutalidade e, nisso, Ogun tem um caminho pleno?

Podemos, então fazer essa conexão entre a função de Ogun e a citação de Rubem Alves sobre a ostra e a formação da pérola. Assim como a ostra precisa do grão de areia para criar a pérola, o aprendizado muitas vezes surge de situações desafiadoras e dolorosas. Ogun, com sua força e determinação, pode colocar Oxossi em situações de risco e desconforto, desafiando-o a superar obstáculos e expandir seus limites. Essas experiências podem ser dolorosas, mas também são essenciais para o crescimento e desenvolvimento pessoal. Portanto, Ogun desempenha um papel fundamental ao proporcionar a Oxossi a oportunidade de enfrentar desafios e pressões que o levam a produzir e interpretar questões mais profundas, impulsionando assim seu avanço intelectual e prático.

Essa dinâmica ilustra como o ensino e o aprendizado não são processos unilaterais, mas sim interações complexas que envolvem trocas constantes entre professor e aluno. À medida que compartilham experiências, conhecimentos e reflexões, ambos os envolvidos têm a oportunidade de se enriquecer e evoluir em sua jornada pessoal e intelectual.

Nascer um caçador não se resume apenas à aquisição de habilidades técnicas ou ao domínio das ferramentas necessárias para a caça. Ser um verdadeiro caçador implica em desenvolver uma profunda conexão com a natureza e com os elementos que a compõem. Para se tornar um caçador, é necessário compreender os ritmos da mata, aprender com a sabedoria dos animais, cultivar a paciência e a observação aguçada. Além disso, é preciso desenvolver um profundo respeito pelo ambiente e pelos seres que nele habitam, reconhecendo-se como parte integrante desse ecossistema complexo. O mesmo podemos relacionar à cidade como essa grande 'mata' ou selva em que existem perigos e soluções em que nós caçadores contemporâneos devemos nos habilitar para não perdermos a caça e nem tão pouco fazer da vida um algo sufocante, quente e sem sabor.

Assim como um caçador se prepara para adentrar uma densa floresta em busca de sua presa, o habitante da cidade grande enfrenta diariamente os desafios de uma selva urbana. Nessa 'floresta de pedra', cada esquina e cada rua podem apresentar seus próprios perigos e desafios, exigindo do indivíduo habilidades de sobrevivência, astúcia e adaptabilidade.

Nesse contexto, o verdadeiro caçador moderno não é aquele que domina apenas técnicas de caça tradicionais, mas sim aquele que sabe navegar pelas intricadas ruas da cidade, decifrando seus códigos e interagindo com sua diversidade de habitats e criaturas. Ele desenvolve uma relação autêntica e harmoniosa com esse ambiente urbano, compreendendo seus ritmos e respeitando sua complexidade.

Portanto, o nascimento de um caçador contemporâneo vai além da simples aquisição de habilidades técnicas. Ele se manifesta na imersão em um contínuo processo de aprendizado e adaptação à selva urbana, onde cada desafio enfrentado representa uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento pessoal. É crucial compreendermos isso prontamente, para evitar nos tornarmos a presa ou cairmos na armadilha da complacência expressa na frase: "um dia da caça, outro dia do caçador".

Foi assim que nasceu essa pintura, de uma vivência minha em São Paulo e que anos depois se tornou esse belo quadro. Forte abraço a todos os professores e alunos, todos os pais e filhos, a todos os irmãos mais velhos e irmãos mais novos que sacaram o brilho do aprendizado.

By André Mustafá, Portugal /Aver-o-Mar 2024

Bibliografia

ALVES, Rubem. - A Ostra Feliz Não Faz Pérolas. Papirus Editora, 2012.

SOLNITt, Rebecca. - A Arte de Caminhar. Martins Fontes, 2017.


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