O PROVEDOR
Cheguei em São Paulo, uma cidade que nunca me deixou desempregado,
ao contrário dos últimos anos em Salvador. A Bahia me dava um grande e
debochado pontapé nas costas, enquanto São Paulo me absorvia, revirava minha
pele e me acolhia com lamentos, perdas e amarguras. Com um currículo que
desejava crescer ainda mais, foi no olho do furacão de pedra, em um ritmo
frenético, que alcancei realizações profissionais que nunca tive em Salvador.
Precisei pular o muro e encarar o outro lado da vida e seus leões. Sabe aquela história de "matar um leão por dia"? Pois é, São Paulo é onde filho chora e mãe
não vê, e isso me ensinou a ser resiliente. Aprendi rapidamente que lá, a noite
não é tão estrelada e o luar não reflete nas águas do Abaeté, as caldas das sereias. São Paulo me fez
perder algumas ilusões poéticas e construir outras narrativas mais encorpadas.
Este quadro, "O Provedor", fala dessa longa jornada em busca do autoconhecimento, da separação, do corte, da ruptura com as minhas proprias mentiras, ilusões e enganos. Esse é o primeiro grande sacrifício: o separar. O se despedir, o arrancar... o dilacerar...Na pintura se percebe um homem ao centro agachado descrichando a carne de um animal, mas vamos ver que por trás dessa imagem tem todo um conceito e roteiro até ele chegar ali.
A primeira ruptura que eu fiz foi sair de Salvador, uma cidade pensada eminentemente para o turismo, para o cidadão de fora da cidade. Só voce caminhar um pouco fora do eixo turistico que vai se deparar com ruas esburacadas e sujas, pessoas passando fome e mendicando no meio das ruas, jovens entre as vielas e ruas fazendo pós-graduação em crime organizado, a cultura sendo sucateada e dando espaço para o entretenimento fastfood... mas se voce não acredita pode CLICAR nessa matéria e saber dos baianos o que está acontecendo com Salvador. Essa minha primeira ruptura da ilusão foi um parto dificil e complicado, mas importante ser dado. A segunda ilusão que construi foi o da familia unida que em muitos os casos quando voce é amado, só continuará sendo amado e unido quando os pais amorosos estestiverem vivos. Repito; quando os pais amorosos estiverem vivos. E primeiro conceito de amorosidade é está presente, escultar e apoiar as diferenças. Se nunca existiu isso, rompa logo é o melhor que você faz: nenhum membro de sua familia vai te apoiar quando voce fizer uma cagada diferente da dele. A terceira e não menos importante ruptura são com as ilusões e os mentirosos os supostos amigos querem lhe vender a todo o momento, consciente ou inconciente.
O que isso significa: que o meio corrompe o homem? O já conhecido de todos, Jean-Jacques Rousseau, em seu livro "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens", aborda a ideia de que "o meio corrompe o homem" ao argumentar que a civilização e o progresso social, em vez de aprimorarem a humanidade, a distanciam de seu estado natural de bondade. Para Rousseau, o homem é originalmente bom em sua essência, mas é a sociedade, com suas desigualdades, ambições e instituições artificiais, que o corrompe, criando divisões e moralidades que deformam sua natureza original. E para que Salvador não me distorcesse tanto o que eu acredito sobre a vida e me prejudicasse a visão de mundo, saí as pressas.
Frantz Fanon, em sua obra *Os Condenados da Terra*, explora como o meio, especialmente nos países do terceiro mundo, corrompe o homem. Fanon argumenta que o colonialismo e as estruturas opressivas desumanizam e destroem a identidade dos povos colonizados, gerando violência, alienação e desintegração social. Ele analisa como as condições adversas moldam negativamente o comportamento e a psicologia dos indivíduos, perpetuando ciclos de opressão. Fanon vê a luta pela libertação como essencial para recuperar a dignidade em um ambiente opressor. Em Salvador, minha frustração com a falta de oportunidades, como salários justos, boa moradia e segurança, refletia a dificuldade de caçar em um ambiente que não oferece recursos adequados. A sensação de estar em um lugar onde a vida começa a se esvair levou ao movimento nomádico, e eu busquei novas possibilidades em São Paulo, antes que a estagnação me consumisse.
MEU FIEL ESCUDEIRO
Estamos todos fechando os olhos para a vida real. Uma vida real sem ilusões. Isso é possivel? Obviamente que não, mas precisei recompor o conceito de família, amigos e comunidade local e sair de Salvador; uma cidade de vitrine. Descobri ainda mais forte, em São Paulo, as doenças sociais, alienação e violências. Mas também ainda mais forte se aproximou de mim o meu fiel "escudeiro" Ogun, aquele que me mostra quem realmente sou, as minhas grandes potencialidades e as perversidades e egoismos que na minha caminha preciso me desfazer: preciso matar, preciso sacrificar. Ogun me mostrou que existe uma família "escondida" nos ajudando cada fracção de segundos nessa nossa jornada aqui na Terra: Ogun!!! Que Ogun seja sempre louvado. Orixá que se transmuta e se transforma sempre, sem dó nem piedade. O dono da faca, o senhor dos dois facões. Aquele que sem pestanejart corta rapido... abre rapido o caminho...manda e agente obedece.
Ogun nos abre os olhos para a nossa primeira familia esquecida: A Terra. A terra preta, aquela que está lá embaixo no solo profundo, nas origens da vida, na origem do movimento. Ogun nos alerta para tudo aquilo que a Terra já viveu antes de nós.. antes dos seres humanos... precisamos fazer um corte com essa familia que gerou biologicamente esse corpo, onde se configuram muito simplesmente pai, mãe e filhos... A Terra, fala dessa nossa genética ancestral que nos diz o quanto caçadores e coletores fomos e somos hoje na atualidade. Esta pintura foi minha primeira e sincera oração junto a Ogun para que, em São Paulo, eu só passasse por privações necessárias ao meu crescimento, mesmo que essas me roessem os ossos.
Qual é a grande metáfora do caçador? O que podemos pensar sobre essa palavra e seus simbolismos hoje nos anos de 2024? Primeiro eu preciso te perguntar, onde você está no mundo? Digo: de onde você parou tudo o que você está fazendo para ler o que eu escrevo? Se estiver no Brasil...em que parte do Brasil? Em que cidade brasileira? Qual o bairro e amigos que te ajudaram ou atrapalharam o seu exercicio de compreenssão sobre a questão do caçador. A metáfora do caçador é viva em sua familia ou vocês nunca se deram conta que são caçadores desde tempos mais remotos? Ou será que você é e sempre será a caça? Traduzindo em miúdos: você vai pra cima das coisas que sonha ou fica se lamentando achando que o mundo todo é muito malvadinho com você? Você defende o que pensa ou fica caladinho concordando com tudo e todos? Você aprendeu olhar nos olhos ou abaixar a cabeça e seguir em frente aceitando chute na bumda? Voce faz reflexões sozinho e decide o rumo que vai tomar no meio de sua flores ou precisa dos outros pra decidir para onde vai? Agora se você estiver fora do Brasil tambem vai entender que esse conceito e pratica sobre o que é ser um caçador na vida contemporânea muda tambem. Principalmente se você tiver uma fé cega e familiares que te mandam calar a boca. Mas vamos com calma e você vai entender que seu caçador dorme dentro de você esperando a hora em que somente você vai aciona-lo a acordar e ir para o fundo de sua mata arrastar o grande "javali" pra fora e devora-lo sem medo com seus proprios dentes, olhando diretamente no fundo dos olhos do bicho.
Mas vamos pensar que você está no Alasca e vai precisar aguardar na floresta o tempo certo (isso pode levar dias); fazer silêncio, respirar com muita concentração, sem ficar tremendo o corpo ou batendo os dentes de frio, controlar as emoções, o ronco do estomago, observar e analisar os rastros deixados pela caça, avançar no momento exato e não perdê-la de vista. Compreender a mudança dos ventos e a chega de nevascas, saber construir rapidamente uma cabana ou entrar em uma toca...Tudo isso pode levar horas... dias... e se vacilar meses até você encontrar o que comer: o animal que vai abater. Abater e não ser abatido é uma tarefa árdua, mas mais árdua ainda é conseguir levar a caça morta, pingando sangue e deixando rastros, por entre a neve ou na mata (se você estiver na Amazonia ou nas flores do Congo), até a comunidade (cidade), sem que nenhum outro animal maior queira devorar você e a caça. E quando digo "animal maior", concidere a probabilidade de outro ser humano partir pra cima de você te matar e comer você e sua caça. E quando digo ser humano: considere a possibilidade de outro caçador roubar sua caça e te matar enterrando o seu corpo ou jogando no rio, levando sua caça como troféu e se tornando herói da comunidade. Vai contar histórias heróicas de aventuras que nao viveu, para os filhos e esposas, de como abateu aquele feroz animal.
Bom, mas vamos chegar na cidade. Na cidade o caçador inicia uma nova aventura: tratar o animal, separando ossos, músculos, vísceras, casco, pele... temperar, comer e saborear a carne suculenta, rever a família, e todos aqueles que apostaram contra o seu retorno bem sucedido... e depois salgar e aprender a guardar as outras partes sem que apodreçam. Ser um caçador, tanto em tempos antigos como em tempos modernos é algo solitário e muito rude. Os caçadores como Oxossi ou Ogun são ermitões. Não gostam de muita gente por perto. Eles são felizes com a solidão e os locais ermos. Caçar não era para qualquer um. Essa tecnologia e esse modo de existir é rústico hoje, mas em muitos locais ainda é o trivial, e na antiguidade era algo altamente valorizado pela tribo ou clãs.
O sacrifício é a renúncia voluntária a algo valioso em prol de um bem maior ou objetivo mais nobre. Representa um ato de entrega, abnegação e esforço, frequentemente associado a desafios e superações. No âmbito pessoal, pode envolver a dedicação de tempo, energia ou recursos para beneficiar outros ou alcançar metas significativas. Culturalmente, sacrifícios têm sido vistos como essenciais para o crescimento, transformação e realização de propósitos profundos, simbolizando compromisso, amor e altruísmo. Assim, o sacrifício reflete a capacidade humana de priorizar o coletivo e o futuro sobre os desejos imediatos.
O sacrifício de um animal por um caçador para alimentar uma comunidade representa a interdependência entre humanos e natureza, onde a vida de um ser é oferecida para sustentar a sobrevivência e bem-estar do grupo. Esse ato envolve respeito e gratidão pelo animal, reconhecendo seu papel vital na cadeia alimentar e na manutenção da vida comunitária. Culturalmente, esse tipo de sacrifício pode ser carregado de rituais e significados profundos, simbolizando o ciclo da vida e a responsabilidade de utilizar os recursos naturais de maneira sustentável e consciente.
Basicamente, o sacrifício do caçador era ficar dias e dias longe de sua família, dormir ao relento, e estar à mercê de intempéries, animais selvagens, insetos, cobras, plantas venenosas, fome, frio, sede e uma mente produzindo ilusões. Este cenário sempre será um espaço de sacrifício, mas também de iniciações ritualísticas e místicas. O sentido do sacrifício aqui é a entrega total ao processo, a resistência e a perseverança diante das adversidades.
Ou seja, cada caçador tem em si a reunião das memórias de outros tantos ancestrais caçadores que o fortificam no presente. Essa é a real sobrevivência que equilibra e reequilibra a vida nessas pequenas ou grandes sociedades ao redor do mundo.
SALVADOR MODERNA?
Ter na sociedade homens e mulheres rituais (caçadores e caçadoras), com crenças arraigadas na filosofia do olhar para a lua, das marés, ouvir o silêncio, deixar os olhos se entrecruzarem e comunicarem coisas que a boca nunca poderá expressar... isso só se encontra em Salvador ou na essência de outros tantos sacerdotes que por motivos diversos estão com seus Axé (terreiros) espalhados por outras tantas cidades do Brasil ou por outras partes do Mundo. Mas Salvador é um bastião onde a ancestralidade afro-brasileira, garante que o antigo não se perca e seja sempre reverenciado e resignificado. A tradição em Salvador e no Recôncavo Baiano sobrevive em um fluxo continuo das praticas rituais sempre rememoradas na contemporaneidade com profundidade e sabedoria. Somente em lugares assim, onde se pode respirar a tradição, religiosidade, fé, sincretismos e intuições, conviver com elementos mágicos e aprender com outros tantos sacerdotes, é possível viver na prática o que as texturas e cores podem comunicar além da simples estética. Apenas em cidades assim ainda se preserva o sacrifício de animais de forma ética, onde os animais são alimentados com comidas sagradas, recebem banhos de ervas, dormem de um dia para o outro e são adornados com laços e fitas coloridas.
“Eles são preparados diante dos altares para migrar de um plano material
para a desmaterialização, voando alto como grandes condores que trazem a ponte
com os mais antigos antepassados e, se tivermos sorte, com os nossos Orixás. O
abate do animal nesses termos e com essas pessoas é algo quase extinto. Comer da
carne do animal após tantos ritos e preparos simbólicos, carregados de potência
divina, é uma garantia de que não fará mal à comunidade, pois os ancestrais e
Orixás estão de acordo e nos abençoam com o Axé. Essa mentalidade ritual de
sacrificar o animal com sacerdotes altamente preparados é algo que muitos de
nós já não concebemos. Perdemos o respeito pelo açougueiro ao cortar um pedaço
de carne no açougue, assim como perdemos o respeito pelos nossos professores,
que antigamente eram mestres, e pelos curandeiros, que conheciam profundamente
as medicinas da floresta. Nada disso é mais confiável ou aplicável ao nosso
cotidiano. E qual foi o motivo da perda de nossa credibilidade? Perdemos os
ritos” Andre Mustafá
A ausência dos ritos nos
afastou da compreensão e do respeito pelo sagrado em todas as suas formas. Sem
os ritos, deixamos de reconhecer a importância do tempo, do cuidado e da
dedicação necessários para transformar um ato comum em um ato sagrado. A
prática do sacrifício, com toda a sua simbologia e espiritualidade, nos ensina
a importância da preparação, do respeito pelos processos e da valorização de
cada etapa da vida. É através dos ritos que encontramos sentido e conexão, que
reconhecemos a sacralidade em nosso dia a dia e que fortalecemos os laços com
nossa comunidade e nossos ancestrais. A recuperação desses ritos pode ser o
caminho para resgatar a credibilidade e a profundidade espiritual que tanto
faltam em nossa sociedade atual.
A questão é que, se você não aprendeu e internalizou essas práticas durante a infância, será muito difícil reproduzi-las com autenticidade e sinceridade na vida adulta. Viver em uma cidade como Salvador (ainda) permite entrar em contato com um ritmo sagrado visível nas ruas, enquanto em uma metrópole como São Paulo, onde as pessoas se tornam meros números em uma engrenagem, é mais fácil perder essa conexão com o sagrado. A falta dos ritos profundos e a desconexão com o espiritual nos fazem questionar se ainda estamos em sintonia com o que realmente importa em nossas vidas e em nossas comunidades.
São Paulo, com sua vasta
imensidão de concreto e aço, é uma metrópole onde a solidão se manifesta de formas
complexas. Aqui, você se vê imerso em uma floresta de pedra, onde cada decisão
deve ser tomada rapidamente e por conta própria. A cidade, embora vigorosa
culturalmente, carrega uma tristeza poética intrínseca, refletindo a luta
constante de pessoas que buscam a sobrevivência em meio a um ambiente caótico e
em constante transformação.
Nesta urbe multifacetada,
a questão se torna: somos caçadores ou caças? Em São Paulo, a natureza da vida
urbana pode fazer com que nos tornemos ambos simultaneamente. O caçador,
representando aquele que busca e conquista, é o indivíduo que se move com
estratégia e determinação, caçando oportunidades e navegando pelas
complexidades do dia a dia. Por outro lado, também somos caçados, sujeitos às
pressões implacáveis do mercado, às exigências de um ritmo frenético e às
incertezas que surgem a cada instante.
No entanto, o ritmo
acelerado da cidade frequentemente impede a preservação do rito tradicional de
sacrifício animal, onde o processo cuidadoso e ritualístico é minimizado ou
mesmo desconsiderado. A rapidez e a demanda por eficiência muitas vezes fazem
com que o respeito e a sacralização do animal se percam, reduzindo o tempo
dedicado à preparação ritual e, consequentemente, à conexão espiritual que ele
representa. A prática, que exige paciência e devoção, é muitas vezes
sacrificada em prol da velocidade e da praticidade urbanas, refletindo um
contraste doloroso entre o sagrado e a realidade implacável da vida
metropolitana.
O que esses questionamentos têm a ver com a pintura que fiz ao chegar em Campinas? Ao sair do turbilhão de São Paulo e me dirigir ao interior do Estado, busquei reencontrar uma vida mais tranquila, ouvir o silêncio e os sons dos pássaros. Essa jornada foi minha tentativa de reconexão com a natureza e, por extensão, com meu sagrado e meus Orixás. A pintura surgiu como uma necessidade de cristalizar um momento significativo do meu sagrado e das experiências vividas em Salvador, para que não se perdessem em minha memória. Minha arte, que não é abstracionista, preserva os gestos, as cenas e as relações entre personagens que, de alguma forma, vivi no meu passado.
SOBRE
O SACRIFICIO
Nos rituais de sacrifício
religioso do candomblé, a morte física de um animal desempenha um papel
fundamental na união da família religiosa, fortalecendo o elo com a
coletividade, trazendo energia vital para todos, conhecido como Axé. Para quem
vive a cultura do candomblé, o sacrifício animal é mais do que a mera oferenda
de carne e sangue; é um meio de restabelecer o equilíbrio da comunidade,
dissipar a fome e cuidar da espiritualidade de todos, desde os mais jovens até
os mais velhos.
O sacrifício animal
permite a cada um reestabelecer conscientemente sua conexão ancestral e
entender a necessidade de ajuda mútua (união), ampliando a compreensão do que é
irmandade. Ou seja, "matar" um animal e comer juntos da mesma carne
significa compartilhar princípios éticos, estéticos e filosóficos, promovendo
uma conexão profunda entre os membros. Retirar a vida de um animal e consumir
sua carne, restaurando a força física, psicológica e espiritual de crianças,
mulheres, jovens, adultos e anciãos, requer coragem, determinação e, acima de
tudo, um sentido maior de família, junto ao tempo.
Historicamente, o
sacrifício de animais tem raízes em rituais agrários em todo o mundo, onde a
carne também desempenhava um papel central na socialização e no fortalecimento
dos laços comunitários. A carne dos animais sacrificados no candomblé é
frequentemente partilhada em um banquete ritual, que comem juntos Orixás e a família
religiosa, reforçando a união e a coesão social entre os participantes. Este
ato de partilha é um momento de celebração e de renovação dos votos de
solidariedade e apoio mútuo dentro da comunidade religiosa. Assim, o candomblé
preserva uma tradição que não só mantém vivo o contato com o divino, mas também
reforça os vínculos sociais e a continuidade cultural de saberes dos mais
velhos para os mais novos.
Agora, você não entende
essa questão do sacrifício de nenhuma forma? Pergunto, então, por que você
aceita o texto bíblico: "Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo,
dai-nos a paz"? Você entende o que isso significa? Está relacionado ao
conceito de sacrifício como um ato redentor e simbólico, no qual o cordeiro
representa a pureza e a expiação dos pecados da humanidade. O candomblé não
compartilha a noção de pecado, culpa, ou a negação dos desejos e prazeres
humanos; não criou o diabo nem perpetua tradições que oprimem ou castigam
mulheres.
No candomblé, o simbolismo
do sacrifício, onde a vida do animal oferece uma conexão com o divino e uma
renovação espiritual, é vivido de maneira vibrante, através de danças e
cânticos, contrastando com a abordagem mais austera e cerimonial encontrada em
algumas tradições católicas, onde os cânticos e orações podem parecer insossos
e sem vida. O candomblé não encara a vida sagrada como um velório perpétuo; não
reprime desejos, não queima mulheres em fogueiras e não precisa convencer
ninguém, porta a porta, de que suas crenças são verdadeiras. Para o candomblé,
o que importa é a integridade do indivíduo e sua intuição espiritual, para que
possa se unir à religiosidade maior dos Orixás.
Vamos pensar ainda mais
profundamente quando você aceita a tradição de, no final do ano, comer aves
como tender ou peru, que são oferecidas na época de Natal em grande parte do
ocidente. A indústria banalizou a morte de animais para o consumo, tratando-os com
muita perversidade em locais apertados e insalubres. Muitas vezes, esses
animais são oferecidos aos humanos mesmo com a carne apodrecida ou adoentada
devido ao uso excessivo de hormônios e antibióticos. Essa prática é um reflexo
de uma sociedade que valoriza o consumo e a ignorância em massa acima da
dignidade e do respeito pela vida animal.
Portanto, ao criticar o
consumismo do sacrifício de animais em grande escala na modernidade, destacamos
a profunda desconexão entre o valor simbólico e espiritual atribuído ao
sacrifício no candomblé e a desumanização presente na produção industrial de
carne. Enquanto o candomblé envolve rituais de respeito e reverência à vida, a
indústria do consumo trata os animais como meros produtos descartáveis,
desprovidos de valor espiritual ou ético. Essa dicotomia revela uma crise de
valores na sociedade contemporânea, onde a exploração e a degradação prevalecem
sobre o respeito e a sustentabilidade. Para superar essa crise, é essencial
reintegrar práticas culturais e espirituais que honrem a vida em todas as suas
formas, promovendo uma relação mais harmoniosa e ética entre a humanidade e a
natureza; e os candomblés sérios fazem isso.
A PINTURA
A pintura “O Provedor” de André
Mustafá não revela tudo isso diretamente nos traços com as canetas
esferográficas, não transcende ao sacrifício animal e da separação e
distribuição de sua carne.
Essa pintura, feita por Mustafá quando
sua família morava em Campinas, a segunda cidade mais violenta do Brasil na
época, expressa o desejo de que sua família seja mais consciente de cada passo
que o caçador dá em seu dia a dia. Esse caçador ancestral nos acompanha na
contemporaneidade: o ancestral vivo e participante que ajuda nas decisões e,
principalmente, nas rupturas e separações de cada pedaço necessário para nossa
vida diária. A obra reflete não apenas a necessidade de nutrir o corpo físico e
cessar a fome, mas também de promover a renovação e o reequilíbrio. Destrinchar
a carne, no contexto atual, é uma metáfora para a luta diária pela
sobrevivência e a transformação necessária das atitudes individuais de cada
membro da família para a cooperação e o apoio mútuo. O caçador, a caça e toda a
maturidade e maturação do tempo indicam, na pintura, que é preciso projeto. É
preciso se antecipar à fome, a uma suposta possível invasão da miséria, ao
desemprego, à falta de saúde, à falta de harmonia. A pintura fala da
concentração para o salto quântico da família. De toda a família.
O desprendimento, a
dilaceração da carne e as rupturas de pele, ossos e tecidos retratados na
pintura não se restringem apenas ao sacrifício animal, mas também se estendem
às relações interpessoais que ali se manifestam, ampliando o conceito de espaço
sagrado. A imolação ritualística no candomblé simboliza um corte essencial para
a reorganização e revitalização espiritual, transformando a separação das
partes do corpo do animal em um meio para criar uma nova corporeidade e
revitalizar a comunidade. Essa prática ritualística nos lembra da importância
de respeitar e valorizar cada tarefa desempenhada, buscando uma integração mais
profunda e significativa com as hierarquias e a verdadeira presença de cada
participante. Ninguém pode ser substituível; todos são importantes e
necessários. Desde o Ashogun até o Alagbè, a Ialorixá, os Ogãs, os Assentados e
os Abiãs, cada um tem um papel essencial para o equilíbrio e a harmonia do
grupo. O mesmo acontece fora do âmbito religioso: pai, mãe, filhos e filhas,
tios e netos, avô e avó são todos necessários na divisão das tarefas e na
partilha da carne (aqui a carne pode ser reinterpretada como esforços e
reconhecimentos). Seus “cargos” são vitalícios, e cada um desempenha funções
cruciais na manutenção da estrutura e do bem-estar familiar. A pintura, assim,
se torna um reflexo da vida, onde cada fragmento, cada indivíduo, é fundamental
para a criação de um todo coeso e harmonioso.
Em uma cidade como São
Paulo, no epicentro da metrópole e fora dos terreiros de candomblé dessa vasta
urbanização, a partilha vai além de um simples ato de generosidade material
para matar a fome; ela se torna um meio de preservar o equilíbrio e a
vitalidade espiritual de pessoas que se apoiam mutuamente, criando novos
conceitos de verdade e de família (irmandade) que, muitas vezes, são mais robustos
do que os laços consanguíneos.
“ Vivi essa experiência profundamente quando residi em um
pensionato, aparentemente isolado da minha família de sangue e da comunidade
religiosa do Afonjá, sentindo-me (inicialmente) desamparado e desconectado dos
meus Orixás. No entanto, conheci pessoas incríveis que estenderam a mão amiga e
não permitiram que eu caísse no universo das drogas e da bandidagem.
Compartilhamos almoços, jantares e lanches em momentos em que, muitas vezes, eu
não tinha dinheiro para comprar meu próprio alimento. Foi nesses momentos que a
espiritualidade verdadeiramente uniu as pessoas, permitindo que
compartilhássemos da mesma “carne” e do mesmo “pão”, e assim nos entendermos em
elos maiores e profundamente autênticos”. Andre Mustafá
Quando compartilhamos o alimento que
caçamos ou compramos com nosso esforço no mercado da esquina, seja pela caça na
mata ou pelo trabalho nas empresas, estamos afirmando que nosso suor, nossa
força e nosso sacrifício individual devem ser compreendidos, respeitados,
reconhecidos e, principalmente, compartilhados ao sentar juntos à mesa. A
alegria de dividir nossos esforços e a expectativa de que outros também
reconheçam e dividam seus esforços, trazendo para a mesa pratos saborosos e
compartilhando com todos, é sinal de muita saúde espiritual, mental, física e
psíquica dessa família (sanguínea ou não). Esse esforço reflete e revela,
escancaradamente, o caráter sagrado da partilha e o respeito de todos ali
sentados à mesa. O quão dignamente cada um se reúne para comer e partilhar
sabores e saberes. Nesse contexto, o Axé simboliza união e renovação. Esse
conceito de renovação e família estendida é essencial para a sustentabilidade
das grandes cidades. O Axé, fortalecido pelos sacrifícios religiosos e pelos
esforços diários de ajuda mútua, deve se espalhar além da mesa, promovendo a
cultura da distribuição da comida. Se a comida é boa, levamos para casa e
pensamos nos vizinhos e outros tantos parentes, amigos e pessoas queridas,
próximas ou distantes. O candomblé e as festas religiosas fazem isso: cada
participante come ali do Axé, mas pode levar um pouco para sua casa, para que
outros também comam e, assim, possamos distribuir a força vital. Cada espaço
social deve ser continuamente revitalizado pela plena consciência do verdadeiro
significado do sacrifício e do sagrado; isso é Axé.
Bibliografia
SELKA, Stephen - RELIGIÃO E A POLÍTICA DA
IDENTIDADE ÉTNICA NA BAHIA, BRASIL. Duke University Press, 2007, 1ª edição.
GUILLORY, Margarita Simon - TRANSFORMAÇÃO
ESPIRITUAL E SOCIAL NAS IGREJAS ESPIRITUAIS AFRO-AMERICANAS. University of
North Carolina Press, 2017, 1ª edição.
FLORES-PEÑA, Ysamur - O ALTAR DA MINHA ALMA: AS
TRADIÇÕES VIVAS DA SANTERÍA. Llewellyn Publications, 2002, 1ª edição.
NARAYAN, Kirin - VIVO NA ESCRITA: CRIANDO
ETNOGRAFIA NA COMPANHIA DE CHEKHOV. University of Chicago Press, 2012, 1ª
edição.
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