O PROVEDOR


O PROVEDOR

Cheguei em São Paulo, uma cidade que nunca me deixou desempregado, ao contrário dos últimos anos em Salvador. A Bahia me dava um grande e debochado pontapé nas costas, enquanto São Paulo me absorvia, revirava minha pele e me acolhia com lamentos, perdas e amarguras. Com um currículo que desejava crescer ainda mais, foi no olho do furacão de pedra, em um ritmo frenético, que alcancei realizações profissionais que nunca tive em Salvador. Precisei pular o muro e encarar o outro lado da vida e seus leões. Sabe aquela história de "matar um leão por dia"? Pois é, São Paulo é onde filho chora e mãe não vê, e isso me ensinou a ser resiliente. Aprendi rapidamente que lá, a noite não é tão estrelada e o luar não reflete nas águas do Abaeté, as caldas das sereias. São Paulo me fez perder algumas ilusões poéticas e construir outras narrativas mais encorpadas.

Conheci outras humanidades que me apoiaram quando mais precisava, na calada da noite ou sob o sol cinzento e fervente. O implacável tempo me revelava uma cidade prática e objetiva, trazendo dinamismo e novas sintonias e frequências energéticas. Foi aí que entendi que os Orixás nunca me haviam abandonado, apenas mudavam de orbita. Quem nos conhece de verdade é quem está ao nosso lado, vivendo dores e alegrias, partilhando conquistas, esforços e dividindo a comida do mesmo prato, mesmo que esse prato seja uma folha de jornal com comida para uma só dentada, assim os Orixás me trouxeram Renata. Minha esposa, Renata Montalvão, me ajudou a sair da casca do ovo, da cela que eu mesmo construí. Ela que tinha acabado de conhecer em Campinas, me conhecia melhor do que toda a minha familia sanguinea e religiosa.

O PRIMEIRO SACRIFÍCIO, A FAMÍLIA

Este quadro, "O Provedor", fala dessa longa jornada em busca do autoconhecimento, da separação, do corte, da ruptura com as minhas proprias mentiras, ilusões e enganos. Esse é o primeiro grande sacrifício: o separar. O se despedir, o arrancar... o dilacerar...Na pintura se percebe um homem ao centro agachado descrichando a carne de um animal, mas vamos ver que por trás dessa imagem tem todo um conceito e roteiro até ele chegar ali. 

A primeira ruptura que eu fiz foi sair de Salvador, uma cidade pensada eminentemente para o turismo, para o cidadão de fora da cidade. Só voce caminhar um pouco fora do eixo turistico que vai se deparar com ruas esburacadas e sujas, pessoas passando fome e mendicando no meio das ruas, jovens entre as vielas e ruas fazendo pós-graduação em crime organizado, a cultura sendo sucateada e dando espaço para o entretenimento fastfood... mas se voce não acredita pode CLICAR nessa matéria e saber dos baianos o que está acontecendo com Salvador. Essa minha primeira ruptura da ilusão foi um parto dificil e complicado, mas importante ser dado. A segunda ilusão que construi foi o da familia unida que em muitos os casos quando voce é amado, só continuará sendo amado e unido quando os pais amorosos estestiverem vivos. Repito; quando os pais amorosos estiverem vivos. E primeiro conceito de amorosidade é está presente, escultar e apoiar as diferenças.  Se nunca existiu isso, rompa logo é o melhor que você faz: nenhum membro de sua familia vai te apoiar quando voce fizer uma cagada diferente da dele. A terceira e não menos importante ruptura são com as ilusões e os mentirosos os supostos amigos querem lhe vender a todo o momento, consciente ou inconciente.

O que isso significa: que o meio corrompe o homem? O já conhecido de todos, Jean-Jacques Rousseau, em seu livro "Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens", aborda a ideia de que "o meio corrompe o homem" ao argumentar que a civilização e o progresso social, em vez de aprimorarem a humanidade, a distanciam de seu estado natural de bondade. Para Rousseau, o homem é originalmente bom em sua essência, mas é a sociedade, com suas desigualdades, ambições e instituições artificiais, que o corrompe, criando divisões e moralidades que deformam sua natureza original. E para que Salvador não me distorcesse tanto o que eu acredito sobre a vida e me prejudicasse a visão de mundo, saí as pressas.



Frantz Fanon, em sua obra *Os Condenados da Terra*, explora como o meio, especialmente nos países do terceiro mundo, corrompe o homem. Fanon argumenta que o colonialismo e as estruturas opressivas desumanizam e destroem a identidade dos povos colonizados, gerando violência, alienação e desintegração social. Ele analisa como as condições adversas moldam negativamente o comportamento e a psicologia dos indivíduos, perpetuando ciclos de opressão. Fanon vê a luta pela libertação como essencial para recuperar a dignidade em um ambiente opressor. Em Salvador, minha frustração com a falta de oportunidades, como salários justos, boa moradia e segurança, refletia a dificuldade de caçar em um ambiente que não oferece recursos adequados. A sensação de estar em um lugar onde a vida começa a se esvair levou ao movimento nomádico, e eu busquei novas possibilidades em São Paulo, antes que a estagnação me consumisse.



MEU FIEL ESCUDEIRO

Estamos todos fechando os olhos para a vida real. Uma vida real sem ilusões. Isso é possivel? Obviamente que não, mas precisei recompor o conceito de família, amigos e comunidade local e sair de Salvador; uma cidade de vitrine. Descobri ainda mais forte, em São Paulo, as doenças sociais, alienação e violências. Mas também ainda mais forte se aproximou de mim o meu fiel "escudeiro" Ogun, aquele que me mostra quem realmente sou, as minhas grandes potencialidades e as perversidades e egoismos que na minha caminha preciso me desfazer: preciso matar, preciso sacrificar.  Ogun me mostrou que existe uma família "escondida" nos ajudando cada fracção de segundos nessa nossa jornada aqui na Terra: Ogun!!! Que Ogun seja sempre louvado. Orixá que se transmuta e se transforma sempre, sem dó nem piedade. O dono da faca, o senhor dos dois facões. Aquele que sem pestanejart corta rapido... abre rapido o caminho...manda e agente obedece.

Ogun nos abre os olhos para a nossa primeira familia esquecida: A Terra. A terra preta, aquela que está lá embaixo no solo profundo, nas origens da vida, na origem do movimento. Ogun nos alerta para tudo aquilo que a Terra já viveu antes de nós.. antes dos seres humanos... precisamos fazer um corte com essa familia que gerou biologicamente esse corpo, onde se configuram muito simplesmente pai, mãe e filhos... A Terra, fala dessa nossa genética ancestral que nos diz o quanto caçadores e coletores fomos e somos hoje na atualidade. Esta pintura foi minha primeira e sincera oração junto a Ogun para que, em São Paulo, eu só passasse por privações necessárias ao meu crescimento, mesmo que essas me roessem os ossos.


A Terra não é apenas um suporte físico, mas uma fonte profunda de sabedoria e memória coletiva que molda nossa identidade, relacionando-se com a compreensão da ancestralidade e dos processos evolutivos. Ogun, como símbolo dessa conexão ancestral, nos lembra da importância de reconhecer e honrar a nossa "família esquecida": a Terra. Ao reavaliar nossa relação com ela, somos chamados a enfrentar e transformar as limitações herdadas e a navegar pelos desafios que surgem em nossa jornada, como um meio de crescimento e autoconhecimento. E essa reflexão só consegui fazer fora de Salvador.


O Sacrifício: Uma Análise Cultural

Qual é a grande metáfora do caçador? O que podemos pensar sobre essa palavra e seus simbolismos hoje nos anos de 2024? Primeiro eu preciso te perguntar, onde você está no mundo? Digo: de onde você parou tudo o que você está fazendo para ler o que eu escrevo? Se estiver no Brasil...em que parte do Brasil? Em que cidade brasileira? Qual o bairro e amigos que te ajudaram ou atrapalharam o seu exercicio de compreenssão sobre a questão do caçador. A metáfora do caçador é viva em sua familia ou vocês nunca se deram conta que são caçadores desde tempos mais remotos? Ou será que você é e sempre será a caça? Traduzindo em miúdos: você vai pra cima das coisas que sonha ou fica se lamentando achando que o mundo todo é muito malvadinho com você? Você defende o que pensa ou fica caladinho concordando com tudo e todos? Você aprendeu olhar nos olhos ou abaixar a cabeça e seguir em frente aceitando chute na bumda? Voce faz reflexões sozinho e decide o rumo que vai tomar no meio de sua flores ou precisa dos outros pra decidir para onde vai? Agora se você estiver fora do Brasil tambem vai entender que esse conceito e pratica sobre o que é ser um caçador na vida contemporânea muda tambem. Principalmente se você tiver uma fé cega e familiares que te mandam calar a boca. Mas vamos com calma e você vai entender que seu caçador dorme dentro de você esperando a hora em que somente você vai aciona-lo a acordar e ir para o fundo de sua mata arrastar o grande "javali" pra fora e devora-lo sem medo com seus proprios dentes, olhando diretamente no fundo dos olhos do bicho.


O CAÇADOR

Mas vamos pensar que você está no Alasca e vai precisar aguardar na floresta o tempo certo (isso pode levar dias); fazer silêncio, respirar com muita concentração, sem ficar tremendo o corpo ou batendo os dentes de frio, controlar as emoções, o ronco do estomago, observar e analisar os rastros deixados pela caça, avançar no momento exato e não perdê-la de vista. Compreender a mudança dos ventos e a chega de nevascas, saber construir rapidamente uma cabana ou entrar em uma toca...Tudo isso pode levar horas... dias... e se vacilar meses até você encontrar o que comer: o animal que vai abater. Abater e não ser abatido é uma tarefa árdua, mas mais árdua ainda é conseguir levar a caça morta, pingando sangue e deixando rastros, por entre a neve ou na mata (se você estiver na Amazonia ou nas flores do Congo), até a comunidade (cidade), sem que nenhum outro animal maior queira devorar você e a caça. E quando digo "animal maior", concidere a probabilidade de outro ser humano partir pra cima de você te matar e comer você e sua caça. E quando digo ser humano: considere a possibilidade de outro caçador roubar sua caça e te matar enterrando o seu corpo ou jogando no rio, levando sua caça como troféu e se tornando herói da comunidade. Vai contar histórias heróicas de aventuras que nao viveu, para os filhos e esposas, de como abateu aquele feroz animal.

Bom, mas vamos chegar na cidade. Na cidade o caçador inicia uma nova aventura: tratar o animal, separando ossos, músculos, vísceras, casco, pele... temperar, comer e saborear a carne suculenta, rever a família, e todos aqueles que apostaram contra o seu retorno bem sucedido... e depois salgar e aprender a guardar as outras partes sem que apodreçam. Ser um caçador, tanto em tempos antigos como em tempos modernos é algo solitário e muito rude. Os caçadores como Oxossi ou Ogun são ermitões. Não gostam de muita gente por perto. Eles são felizes com a solidão e os locais ermos. Caçar não era para qualquer um. Essa tecnologia e esse modo de existir é rústico hoje, mas em muitos locais ainda é o trivial, e na antiguidade era algo altamente valorizado pela tribo ou clãs. 


O SACRIFÍCIO

O sacrifício é a renúncia voluntária a algo valioso em prol de um bem maior ou objetivo mais nobre. Representa um ato de entrega, abnegação e esforço, frequentemente associado a desafios e superações. No âmbito pessoal, pode envolver a dedicação de tempo, energia ou recursos para beneficiar outros ou alcançar metas significativas. Culturalmente, sacrifícios têm sido vistos como essenciais para o crescimento, transformação e realização de propósitos profundos, simbolizando compromisso, amor e altruísmo. Assim, o sacrifício reflete a capacidade humana de priorizar o coletivo e o futuro sobre os desejos imediatos.


O sacrifício de um animal por um caçador para alimentar uma comunidade representa a interdependência entre humanos e natureza, onde a vida de um ser é oferecida para sustentar a sobrevivência e bem-estar do grupo. Esse ato envolve respeito e gratidão pelo animal, reconhecendo seu papel vital na cadeia alimentar e na manutenção da vida comunitária. Culturalmente, esse tipo de sacrifício pode ser carregado de rituais e significados profundos, simbolizando o ciclo da vida e a responsabilidade de utilizar os recursos naturais de maneira sustentável e consciente.


Basicamente, o sacrifício do caçador era ficar dias e dias longe de sua família, dormir ao relento, e estar à mercê de intempéries, animais selvagens, insetos, cobras, plantas venenosas, fome, frio, sede e uma mente produzindo ilusões. Este cenário sempre será um espaço de sacrifício, mas também de iniciações ritualísticas e místicas. O sentido do sacrifício aqui é a entrega total ao processo, a resistência e a perseverança diante das adversidades. 


É a capacidade de superar os desafios para prover sustento à sua comunidade, mantendo uma conexão íntima com a natureza e um profundo respeito por cada vida tirada, para alimentar e saciar toda a família, e também reiterar o respeito pelo caçador ao retornar. Este ato de coragem e resiliência, que une o físico e o espiritual, simboliza no subconsciente dessas antigas sociedades/comunidades a renovação e a perpetuação dos laços comunitários com o caçador, onde cada parte da jornada desse ser, quase divinizado em sua tribo, consiga sobreviver em seus feitos após a morte. 



Ou seja, cada caçador tem em si a reunião das memórias de outros tantos ancestrais caçadores que o fortificam no presente. Essa é a real sobrevivência que equilibra e reequilibra a vida nessas pequenas ou grandes sociedades ao redor do mundo.



O Festival Gadhimai, realizado a cada cinco anos no templo de Gadhimai em Bariyarpur, Nepal, é um ritual hindu dedicado à deusa Gadhimai, deusa do poder. O festival começa com uma cerimônia noturna conhecida como "Panchabali," onde cinco tipos de animais — geralmente um rato, uma cabra, um galo, um porco e um pombo — são sacrificados para iniciar o ritual. 



No dia seguinte, milhares de búfalos, cabras, galinhas e outros animais são sacrificados em uma grande arena por devotos, que acreditam que o sacrifício apazigua a deusa e traz boa sorte, prosperidade e a realização de desejos. O sangue dos animais é oferecido à deusa como parte essencial do ritual, que atrai milhões de participantes e espectadores ao templo. Após os sacrifícios, as celebrações continuam com orações e festividades em homenagem à Gadhimai.




SALVADOR MODERNA?

Salvador, apesar de permitir que muitos de seus filhos sofram com fome e desemprego devido as políticas públicas mesquinhas e perversas, ainda preserva sacerdotes e religiosos que seguem o mesmo perfil do caçador ancestral. Seja com antepassados do extremo Alasca ou nas profundas florestas da Nigéria. Afinal de contas temos ancestrais muito mais antigos do que o tempo do trafico negreiro. Podemos pensar que nossa familia ancestral perdida tambem pode está associada aos nossos indios brasileiros, que eram infinitas as linguas e costumes em um Brasil muito antes dos primeiros invasores europeus.

Contudo vamos nos ater ao candomblé de Salvador (que ainda preserva fragmentos da tradição afro-brasileira de pouco mais do que 150 anos), esses sacerdotes chegam, em seus templos religiosos (terreiros), com um ou dois dias de antecedência, tomam banhos de folhas, vestem suas roupas sacerdotais, adornam-se com colares e realizam suas rezas. Esperam o horario correto para saudafem seus Orixás, tanto individuais quanto coletivos, pedem bênçãos aos mais velhos, abençoam os mais novos e se alimentam das comidas sacralizadas aos pés das divindades, purificando-se, para que mais tarde ou em dias seguintes realize o sacrificio animal junto com a comunidade religiosa. Eles partem obis ou orobôs para dialogar com seus Orixás ou consultar outros membros da comunidade religiosa para saber se há mais alguma tarefa a ser feita. Todos estão em sintonia com a ancestralidade, a espiritualidade e os Orixás, tornando esse processo complexo com uma religião profundamente rica e exigente, que não é para qualquer um. Pode parecer estranho para muitos, mas não estou inventando uma historia de minha cabeça. Esse é tambem o meu lugar de fala: sou filho de Ogun do Afonja em Salvador e convivi muitos anos morando dentro do Axé aprendendo com os meus mais velhos.

Em Salvador, uma cidade que preserva aspectos antigos da cultura brasileira, mantidos pelos africanos e algumas centenas de indigenas e seus descendentes, esses rituais continuam sendo fundamentais para a formação de um cidadão ético. Você já imaginou Salvador sem a religião dos Orixás? Sem a presença forte dos Caboclos da mata? Que caos não seria?

Ter na sociedade homens e mulheres rituais (caçadores e caçadoras), com crenças arraigadas na filosofia do olhar para a lua, das marés, ouvir o silêncio, deixar os olhos se entrecruzarem e comunicarem coisas que a boca nunca poderá expressar... isso só se encontra em Salvador ou na essência de outros tantos sacerdotes que por motivos diversos estão com seus Axé (terreiros) espalhados por outras tantas cidades do Brasil ou por outras partes do Mundo. Mas Salvador é um bastião onde a ancestralidade afro-brasileira, garante que o antigo não se perca e seja sempre reverenciado e resignificado. A tradição em Salvador e no Recôncavo Baiano sobrevive em um fluxo continuo das praticas rituais sempre rememoradas na contemporaneidade com profundidade e sabedoria. Somente em lugares assim, onde se pode respirar a tradição, religiosidade, fé, sincretismos e intuições, conviver com elementos mágicos e aprender com outros tantos sacerdotes, é possível viver na prática o que as texturas e cores podem comunicar além da simples estética. Apenas em cidades assim ainda se preserva o sacrifício de animais de forma ética, onde os animais são alimentados com comidas sagradas, recebem banhos de ervas, dormem de um dia para o outro e são adornados com laços e fitas coloridas.

Eles são preparados diante dos altares para migrar de um plano material para a desmaterialização, voando alto como grandes condores que trazem a ponte com os mais antigos antepassados e, se tivermos sorte, com os nossos Orixás. O abate do animal nesses termos e com essas pessoas é algo quase extinto. Comer da carne do animal após tantos ritos e preparos simbólicos, carregados de potência divina, é uma garantia de que não fará mal à comunidade, pois os ancestrais e Orixás estão de acordo e nos abençoam com o Axé. Essa mentalidade ritual de sacrificar o animal com sacerdotes altamente preparados é algo que muitos de nós já não concebemos. Perdemos o respeito pelo açougueiro ao cortar um pedaço de carne no açougue, assim como perdemos o respeito pelos nossos professores, que antigamente eram mestres, e pelos curandeiros, que conheciam profundamente as medicinas da floresta. Nada disso é mais confiável ou aplicável ao nosso cotidiano. E qual foi o motivo da perda de nossa credibilidade? Perdemos os ritos” Andre Mustafá


A ausência dos ritos nos afastou da compreensão e do respeito pelo sagrado em todas as suas formas. Sem os ritos, deixamos de reconhecer a importância do tempo, do cuidado e da dedicação necessários para transformar um ato comum em um ato sagrado. A prática do sacrifício, com toda a sua simbologia e espiritualidade, nos ensina a importância da preparação, do respeito pelos processos e da valorização de cada etapa da vida. É através dos ritos que encontramos sentido e conexão, que reconhecemos a sacralidade em nosso dia a dia e que fortalecemos os laços com nossa comunidade e nossos ancestrais. A recuperação desses ritos pode ser o caminho para resgatar a credibilidade e a profundidade espiritual que tanto faltam em nossa sociedade atual.

A questão é que, se você não aprendeu e internalizou essas práticas durante a infância, será muito difícil reproduzi-las com autenticidade e sinceridade na vida adulta. Viver em uma cidade como Salvador (ainda) permite entrar em contato com um ritmo sagrado visível nas ruas, enquanto em uma metrópole como São Paulo, onde as pessoas se tornam meros números em uma engrenagem, é mais fácil perder essa conexão com o sagrado. A falta dos ritos profundos e a desconexão com o espiritual nos fazem questionar se ainda estamos em sintonia com o que realmente importa em nossas vidas e em nossas comunidades.

São Paulo, com sua vasta imensidão de concreto e aço, é uma metrópole onde a solidão se manifesta de formas complexas. Aqui, você se vê imerso em uma floresta de pedra, onde cada decisão deve ser tomada rapidamente e por conta própria. A cidade, embora vigorosa culturalmente, carrega uma tristeza poética intrínseca, refletindo a luta constante de pessoas que buscam a sobrevivência em meio a um ambiente caótico e em constante transformação.

Nesta urbe multifacetada, a questão se torna: somos caçadores ou caças? Em São Paulo, a natureza da vida urbana pode fazer com que nos tornemos ambos simultaneamente. O caçador, representando aquele que busca e conquista, é o indivíduo que se move com estratégia e determinação, caçando oportunidades e navegando pelas complexidades do dia a dia. Por outro lado, também somos caçados, sujeitos às pressões implacáveis do mercado, às exigências de um ritmo frenético e às incertezas que surgem a cada instante.

No entanto, o ritmo acelerado da cidade frequentemente impede a preservação do rito tradicional de sacrifício animal, onde o processo cuidadoso e ritualístico é minimizado ou mesmo desconsiderado. A rapidez e a demanda por eficiência muitas vezes fazem com que o respeito e a sacralização do animal se percam, reduzindo o tempo dedicado à preparação ritual e, consequentemente, à conexão espiritual que ele representa. A prática, que exige paciência e devoção, é muitas vezes sacrificada em prol da velocidade e da praticidade urbanas, refletindo um contraste doloroso entre o sagrado e a realidade implacável da vida metropolitana.

O que esses questionamentos têm a ver com a pintura que fiz ao chegar em Campinas? Ao sair do turbilhão de São Paulo e me dirigir ao interior do Estado, busquei reencontrar uma vida mais tranquila, ouvir o silêncio e os sons dos pássaros. Essa jornada foi minha tentativa de reconexão com a natureza e, por extensão, com meu sagrado e meus Orixás. A pintura surgiu como uma necessidade de cristalizar um momento significativo do meu sagrado e das experiências vividas em Salvador, para que não se perdessem em minha memória. Minha arte, que não é abstracionista, preserva os gestos, as cenas e as relações entre personagens que, de alguma forma, vivi no meu passado.

 

SOBRE O SACRIFICIO

Nos rituais de sacrifício religioso do candomblé, a morte física de um animal desempenha um papel fundamental na união da família religiosa, fortalecendo o elo com a coletividade, trazendo energia vital para todos, conhecido como Axé. Para quem vive a cultura do candomblé, o sacrifício animal é mais do que a mera oferenda de carne e sangue; é um meio de restabelecer o equilíbrio da comunidade, dissipar a fome e cuidar da espiritualidade de todos, desde os mais jovens até os mais velhos.

O sacrifício animal permite a cada um reestabelecer conscientemente sua conexão ancestral e entender a necessidade de ajuda mútua (união), ampliando a compreensão do que é irmandade. Ou seja, "matar" um animal e comer juntos da mesma carne significa compartilhar princípios éticos, estéticos e filosóficos, promovendo uma conexão profunda entre os membros. Retirar a vida de um animal e consumir sua carne, restaurando a força física, psicológica e espiritual de crianças, mulheres, jovens, adultos e anciãos, requer coragem, determinação e, acima de tudo, um sentido maior de família, junto ao tempo.

Historicamente, o sacrifício de animais tem raízes em rituais agrários em todo o mundo, onde a carne também desempenhava um papel central na socialização e no fortalecimento dos laços comunitários. A carne dos animais sacrificados no candomblé é frequentemente partilhada em um banquete ritual, que comem juntos Orixás e a família religiosa, reforçando a união e a coesão social entre os participantes. Este ato de partilha é um momento de celebração e de renovação dos votos de solidariedade e apoio mútuo dentro da comunidade religiosa. Assim, o candomblé preserva uma tradição que não só mantém vivo o contato com o divino, mas também reforça os vínculos sociais e a continuidade cultural de saberes dos mais velhos para os mais novos.

Agora, você não entende essa questão do sacrifício de nenhuma forma? Pergunto, então, por que você aceita o texto bíblico: "Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz"? Você entende o que isso significa? Está relacionado ao conceito de sacrifício como um ato redentor e simbólico, no qual o cordeiro representa a pureza e a expiação dos pecados da humanidade. O candomblé não compartilha a noção de pecado, culpa, ou a negação dos desejos e prazeres humanos; não criou o diabo nem perpetua tradições que oprimem ou castigam mulheres.

No candomblé, o simbolismo do sacrifício, onde a vida do animal oferece uma conexão com o divino e uma renovação espiritual, é vivido de maneira vibrante, através de danças e cânticos, contrastando com a abordagem mais austera e cerimonial encontrada em algumas tradições católicas, onde os cânticos e orações podem parecer insossos e sem vida. O candomblé não encara a vida sagrada como um velório perpétuo; não reprime desejos, não queima mulheres em fogueiras e não precisa convencer ninguém, porta a porta, de que suas crenças são verdadeiras. Para o candomblé, o que importa é a integridade do indivíduo e sua intuição espiritual, para que possa se unir à religiosidade maior dos Orixás.

Vamos pensar ainda mais profundamente quando você aceita a tradição de, no final do ano, comer aves como tender ou peru, que são oferecidas na época de Natal em grande parte do ocidente. A indústria banalizou a morte de animais para o consumo, tratando-os com muita perversidade em locais apertados e insalubres. Muitas vezes, esses animais são oferecidos aos humanos mesmo com a carne apodrecida ou adoentada devido ao uso excessivo de hormônios e antibióticos. Essa prática é um reflexo de uma sociedade que valoriza o consumo e a ignorância em massa acima da dignidade e do respeito pela vida animal.

Portanto, ao criticar o consumismo do sacrifício de animais em grande escala na modernidade, destacamos a profunda desconexão entre o valor simbólico e espiritual atribuído ao sacrifício no candomblé e a desumanização presente na produção industrial de carne. Enquanto o candomblé envolve rituais de respeito e reverência à vida, a indústria do consumo trata os animais como meros produtos descartáveis, desprovidos de valor espiritual ou ético. Essa dicotomia revela uma crise de valores na sociedade contemporânea, onde a exploração e a degradação prevalecem sobre o respeito e a sustentabilidade. Para superar essa crise, é essencial reintegrar práticas culturais e espirituais que honrem a vida em todas as suas formas, promovendo uma relação mais harmoniosa e ética entre a humanidade e a natureza; e os candomblés sérios fazem isso.


A PINTURA

A pintura “O Provedor” de André Mustafá não revela tudo isso diretamente nos traços com as canetas esferográficas, não transcende ao sacrifício animal e da separação e distribuição de sua carne.


“A pintura é um pedido profundo de sustento e a busca por uma conexão mais respeitosa e responsável com a vida nas grandes cidades. Respeito pela minha vida junto a minha esposa Renata. Quando eu termino uma pintura, quero que a mesma cristalize em mim como uma tatuagem coisas boas que me façam aprofundar minhas reflexões sobre o viver aqui na terra, para que eu nunca esqueça a necessidade de ser um homem virado para o horizonte afetivo da fé, dos rituais do candomblé que secretam belezas singelas”André Mustafá
.

Essa pintura, feita por Mustafá quando sua família morava em Campinas, a segunda cidade mais violenta do Brasil na época, expressa o desejo de que sua família seja mais consciente de cada passo que o caçador dá em seu dia a dia. Esse caçador ancestral nos acompanha na contemporaneidade: o ancestral vivo e participante que ajuda nas decisões e, principalmente, nas rupturas e separações de cada pedaço necessário para nossa vida diária. A obra reflete não apenas a necessidade de nutrir o corpo físico e cessar a fome, mas também de promover a renovação e o reequilíbrio. Destrinchar a carne, no contexto atual, é uma metáfora para a luta diária pela sobrevivência e a transformação necessária das atitudes individuais de cada membro da família para a cooperação e o apoio mútuo. O caçador, a caça e toda a maturidade e maturação do tempo indicam, na pintura, que é preciso projeto. É preciso se antecipar à fome, a uma suposta possível invasão da miséria, ao desemprego, à falta de saúde, à falta de harmonia. A pintura fala da concentração para o salto quântico da família. De toda a família.

O desprendimento, a dilaceração da carne e as rupturas de pele, ossos e tecidos retratados na pintura não se restringem apenas ao sacrifício animal, mas também se estendem às relações interpessoais que ali se manifestam, ampliando o conceito de espaço sagrado. A imolação ritualística no candomblé simboliza um corte essencial para a reorganização e revitalização espiritual, transformando a separação das partes do corpo do animal em um meio para criar uma nova corporeidade e revitalizar a comunidade. Essa prática ritualística nos lembra da importância de respeitar e valorizar cada tarefa desempenhada, buscando uma integração mais profunda e significativa com as hierarquias e a verdadeira presença de cada participante. Ninguém pode ser substituível; todos são importantes e necessários. Desde o Ashogun até o Alagbè, a Ialorixá, os Ogãs, os Assentados e os Abiãs, cada um tem um papel essencial para o equilíbrio e a harmonia do grupo. O mesmo acontece fora do âmbito religioso: pai, mãe, filhos e filhas, tios e netos, avô e avó são todos necessários na divisão das tarefas e na partilha da carne (aqui a carne pode ser reinterpretada como esforços e reconhecimentos). Seus “cargos” são vitalícios, e cada um desempenha funções cruciais na manutenção da estrutura e do bem-estar familiar. A pintura, assim, se torna um reflexo da vida, onde cada fragmento, cada indivíduo, é fundamental para a criação de um todo coeso e harmonioso.

Em uma cidade como São Paulo, no epicentro da metrópole e fora dos terreiros de candomblé dessa vasta urbanização, a partilha vai além de um simples ato de generosidade material para matar a fome; ela se torna um meio de preservar o equilíbrio e a vitalidade espiritual de pessoas que se apoiam mutuamente, criando novos conceitos de verdade e de família (irmandade) que, muitas vezes, são mais robustos do que os laços consanguíneos.

“ Vivi essa experiência profundamente quando residi em um pensionato, aparentemente isolado da minha família de sangue e da comunidade religiosa do Afonjá, sentindo-me (inicialmente) desamparado e desconectado dos meus Orixás. No entanto, conheci pessoas incríveis que estenderam a mão amiga e não permitiram que eu caísse no universo das drogas e da bandidagem. Compartilhamos almoços, jantares e lanches em momentos em que, muitas vezes, eu não tinha dinheiro para comprar meu próprio alimento. Foi nesses momentos que a espiritualidade verdadeiramente uniu as pessoas, permitindo que compartilhássemos da mesma “carne” e do mesmo “pão”, e assim nos entendermos em elos maiores e profundamente autênticos”. Andre Mustafá

Quando compartilhamos o alimento que caçamos ou compramos com nosso esforço no mercado da esquina, seja pela caça na mata ou pelo trabalho nas empresas, estamos afirmando que nosso suor, nossa força e nosso sacrifício individual devem ser compreendidos, respeitados, reconhecidos e, principalmente, compartilhados ao sentar juntos à mesa. A alegria de dividir nossos esforços e a expectativa de que outros também reconheçam e dividam seus esforços, trazendo para a mesa pratos saborosos e compartilhando com todos, é sinal de muita saúde espiritual, mental, física e psíquica dessa família (sanguínea ou não). Esse esforço reflete e revela, escancaradamente, o caráter sagrado da partilha e o respeito de todos ali sentados à mesa. O quão dignamente cada um se reúne para comer e partilhar sabores e saberes. Nesse contexto, o Axé simboliza união e renovação. Esse conceito de renovação e família estendida é essencial para a sustentabilidade das grandes cidades. O Axé, fortalecido pelos sacrifícios religiosos e pelos esforços diários de ajuda mútua, deve se espalhar além da mesa, promovendo a cultura da distribuição da comida. Se a comida é boa, levamos para casa e pensamos nos vizinhos e outros tantos parentes, amigos e pessoas queridas, próximas ou distantes. O candomblé e as festas religiosas fazem isso: cada participante come ali do Axé, mas pode levar um pouco para sua casa, para que outros também comam e, assim, possamos distribuir a força vital. Cada espaço social deve ser continuamente revitalizado pela plena consciência do verdadeiro significado do sacrifício e do sagrado; isso é Axé.

 

Bibliografia                    

SELKA, Stephen - RELIGIÃO E A POLÍTICA DA IDENTIDADE ÉTNICA NA BAHIA, BRASIL. Duke University Press, 2007, 1ª edição.

 

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NARAYAN, Kirin - VIVO NA ESCRITA: CRIANDO ETNOGRAFIA NA COMPANHIA DE CHEKHOV. University of Chicago Press, 2012, 1ª edição.


 


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