REENCARNAÇÃO

Para os iorubá, após a morte, a alma trilha sua jornada pelos 9 céus e depois, retorna a sua família na Terra, o que chamam Atun Nwá (o retorno). A figura astral à direita é uma Geledé e as cobras vão revelando o que foi gerado no útero. Aqui expresso minha curiosidade sobre o nascimento de minha filha Valentina. Quem foi Ela antes de chegar aqui?


REENCARNAÇÃO

Estive casado com minha primeira esposa por cerca de 18 anos, mas a ausência de filhos pode ter contribuído para o desgaste da relação, culminando em nossa separação. Deixei Salvador e mudei-me para São Paulo. Durante muitos anos, achei melhor não me envolver, fazer amigos, conhecer pessoas ou, quem sabe, voltar a ter qualquer tipo de relacionamento afetivo mais próximo. Acreditava que constituir família exigiria novamente um mergulho na confiança, algo em que eu realmente não estava interessado.

Saboreei minha solidão ao lado das multidões, indo e vindo como elas, do trabalho para casa. Não sofria com essa vida monótona em São Paulo, pois meus finais de semana e minhas noites no quarto que apelidei carinhosamente de cela, eram preenchidos com meus poucos livros, alguns pincéis, lápis e duas ou três telas de pintura. A solidão, até então, não encontrou motivo para me apresentar à morte.

São Paulo, visão ao centro do Copan.


Eu caminhava pelas ruas movimentadas dessa suposta cidade que chamamos de São Paulo como uma sombra entre sombras, mas em minha cela havia um universo particular onde eu podia criar, refletir e me perder em pensamentos. A companhia dos meus livros e a expressão artística eram suficientes para preencher o vazio que a ausência de uma família deixava. A rotina se tornava minha aliada, e a arte, minha confidente, mantendo a chama da vida acesa em meio ao silêncio ensurdecedor da solidão.

A ancestralidade, nossos guias espirituais, os meus Orixás, nunca desistiram de mim. Recebi inúmeras correspondências dentro e fora de minha cela, principalmente com meu maior confidente, o Orixá que chamamos hoje de Exú: nosso mais adorável e afável comunicador entre tantos mundos e esferas. Ele, a grande mãe do mar Iemanjá, Ogum, meu grande senhor, e tantas outras divindades como Iansã, Oxum, Oxóssi e até o inabalável Xangô, me visitavam quase que constantemente em meu pequeno quarto. Percebia que eles estavam calmos, mas preocupados comigo, seu filho reencarnado.

Escultura do Fauno de Victor Brecheret no Parque Trianon em São Paulo, fiquei me reconectando com a natureza diversas vezes.


Após alguns anos, encontrei minha segunda esposa: Renata Montalvão. Ela morava na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, e quase todos os fins de semana eu fugia do silêncio cheio de gritos de São Paulo para abraçá-la, contar e ouvir histórias dessa jovem mulher que já tinha uma pequena menina chamada Maria Clara. Comecei a gostar de seu sorriso, de seus cabelos, de seus olhos castanhos, de sua voz doce e suave, das ondas espalhadas pelo seu corpo, de seus cheiros, das singelezas que contava e da garra de crescer e reconquistar novamente um lar. Esse momento trouxe uma renovação inesperada. Cada fim de semana em Campinas se tornava mais do que uma fuga; era um reencontro com a esperança.

Depois de alguns anos, ela me convidou para alugarmos uma casa em Campinas e vivermos juntos, para sentir como seria viver sob o mesmo teto, observar as coisas de frente. Ver minha nova companheira nas funções do dia a dia, sentir sua determinação e amor crescerem, fez brotar em mim um novo sentido de família, de união, de laços. Renata é uma mulher de muita fibra, muitos sonhos, e uma vontade de crescer e construir um império que eu nunca tinha visto em outra mulher.

Eu e Renata em 2008, proximo do Parque Ibirapurea em São Paulo, na frente da escultura de Victor Brecheret; Monumento às Bandeiras (1953). 


Foi assim que ela, com toda sua força espiritual, unida a uma família celestial, entendeu que era o momento de trazer ao mundo a alma que hoje chamamos de Valentina. Chamo desses anos longos até aqui de preparação espiritual para a reencarnação de Valentina: um presente divino, nascido dos nossos sorrisos compartilhados, da nossa potência carnal, da nossa sintonia emocional e das nossas conexões astrais. O nascimento de Valentina é um marco luminoso em minha vida, registrado nesta pintura que reflete tantas emoções e memórias, especialmente após a partida de minha mãe, Perpétua, em Salvador, sete anos atrás.

Aquela semente foi crescendo e, cada vez que voltava do trabalho, minha esposa compartilhava como Valentina, ainda no ventre, respondia aos meus chamados e reconhecia minha voz. Comecei a fazer carinho na barriga e sentia minha filha se mexer. Não era apenas um movimento físico, mas uma conexão profunda que me unia não só a Valentina, mas a toda a minha família astral. A gravidez, o feto se desenvolvendo na barriga de uma mulher, é um grande portal para nossa família espiritual. Era como se Valentina estivesse se despedindo de lá para nascer cá.

Estava completamente imerso nesse novo universo, pintando a barriga com desenhos, tentando traduzir aquele momento em imagem. Deixava o carinho e a leveza das cerdas dos pincéis deslizarem na pele esticada da barriga de minha esposa. As tintas bailavam e criavam outras cores e notas musicais que somente Valentina entendia. Cada pincelada era uma canção de amor, um poema visual que celebrava a vida que ali se formava, um diálogo silencioso entre pai e filha, entre o visível e o invisível.

Eu pintando e reconectando com o portal de outros mundos.

Senhoras e senhores, vocês não podem imaginar o furacão de emoções que atravessava minha vida. Era como se eu estivesse há longos anos à deriva em um vasto oceano, num pequeno barco à vela, sem vento. De repente, tudo se agitava, como se eu estivesse preso dentro de uma garrafa plástica nas mãos de uma criança de três anos. Eu tentava entender, mas não compreendia nada. Minha esposa, por outro lado, estava radiante com a proximidade da chegada de Valentina.

Quando finalmente reconheci minha filha no berçário, chamei por seu nome, e, por um breve instante, seus olhos se abriram, reconhecendo a voz do pai. Foi um momento mágico e emocionante, que guardarei para sempre em meu coração. Valentina nos meus braços despertou um turbilhão de reflexões sobre nossas conexões cósmicas e possíveis histórias compartilhadas em vidas passadas. A palavra "reencarnação", com suas raízes, mais próximas, no latim, ecoava em minha mente, evocando perguntas sobre quem éramos antes, quem éramos nós e em que momentos de nossas existências anteriores nos encontramos amigos, amantes, ou até mesmo adversários mortais. Segurando Valentina pela primeira vez, esses questionamentos ganharam vida.

Enquanto Valentina crescia, nossa conexão com a espiritualidade se fortalecia. Isso se tornava uma forma de compreender a profundidade do Amor. Observar sua evolução física e espiritual nos fazia perceber que a vida é um eterno ciclo de transformação e aprendizado. Cada sorriso, cada movimento, era uma manifestação dessa energia vital que nos conecta uns aos outros e ao universo. O corpo sai da barriga, mas continua o processo de reencarnar, da chegada de todos os elementos não materiais no corpo até o período de sete anos, como se estivesse desenvolvendo, reabilitando ou reconfigurando todos os seus programas para essa nova jornada. Mesmo em carne, é sempre uma jornada espiritual.


O renomado estudioso da espiritualidade infantil, Rudolf Steiner, em seu livro "A Educação da Criança", aborda como os primeiros sete anos de vida são cruciais para o desenvolvimento espiritual e físico. Segundo Steiner, é durante esse período que a alma começa a se integrar plenamente ao corpo físico, preparando-se para as experiências e desafios desta vida. Suas palavras ecoam profundamente em nossa experiência com Valentina, reforçando a ideia de que cada momento de sua existência é uma manifestação do contínuo processo de reencarnação e aprendizado espiritual.

Rudolf Steiner foi um filósofo, educador, artista e esoterista. 


O conceito de reencarnação, ou o retorno do espírito à vida física após a morte do corpo, é central em diversas tradições espirituais. É visto como um ciclo de evolução espiritual, onde cada vida oferece oportunidades de aprendizado e crescimento. A compreensão desse conceito varia, mas a ideia fundamental de que a alma pode retornar à Terra em diferentes formas permeia muitas culturas e sempre irrigou meus pensamentos, pois foi assim que fui "formado" por minha mãe Perpétua, que aprendeu muito com o espiritismo kardecista ao longo dos primeiros anos de minha exsitencia que vivi junto com Ela, como mãe e filho.

O que Valentina representava em minha vida? O que nós representávamos na vida que Deus nos estava concedendo? Que forças éramos e somos nós, capazes de materializar corpos humanos? Por que nossas energias, livres de formas, sintonizavam-se com a materialidade humana... pernas, braços, cabeças, bocas, intestinos? Por que nossas forças energéticas se alinhavam com a humanidade? Será que sempre fomos humanos? E se a humanidade fosse algo realmente mais evoluído, qual seria o sentido, a necessidade e o significado de minha presença, junto com a de minha filha e esposa, para a melhoria de algum aspecto da esfera humana?

Em meio a esse vasto universo espiritual, mítico e criativo, eu procurava encontrar respostas sobre nossa jornada compartilhada. Ancorado no amor e na curiosidade pela profundidade do nosso vínculo, tentava traduzir tudo isso em uma pequena pintura em papel.



COMO EU CONTO SOBRE A REENCARNAÇÃO PARA VALENTINA?

André e Valentina Mustafá no banco em frente a praia de Aver-o-Mar em Portugal 2024

Reencarnação, para meus delírios artísticos e tudo que aprendi com minha mãe quando ela estava viva, resultou assim: Quando morremos, o espírito ou alma sai do corpo e viram bolhas de sabão, flutuando até altas paisagens. Lá em cima, encontram outras tantas bolhas de sabão que, ao se tocarem ou terem suas películas tão fininhas, estouram, e suas gotículas se separam e se unem a outras gotículas, dando origem a novas almas totalmente novas ou espíritos com necessidade de retornar a suas famílias aqui na Terra. Era assim que eu explicava para Valentina quando ela tinha apenas 5 anos de idade. Saíamos pelas ruas de Portugal, na cidade de Póvoa de Varzim, e íamos conversando sobre diversos assuntos, como vida e morte, nascer e reencarnar... E assim, eu tentava explicar a ela de forma artística e ela perguntando tudo me explicava o motivo de estarmos juntos com esses corpos, vivendo essa vida assim... assim...

Nessa jornada de autodescoberta com Valentina, percebo que a compreensão da reencarnação vai além de uma mera explicação sobre a continuidade da vida após a morte. É uma jornada de reflexão sobre os laços que nos unem ao passado, ao presente e ao futuro, revelando uma intricada teia de experiências, emoções e aprendizados que se entrelaçam em nosso caminho.

Ao contemplar a presença de Valentina em minha vida, sinto-me guiado por uma conexão espiritual que transcende o tempo e o espaço. É como se sua chegada fosse um elo entre o que fui, o que sou e o que ainda posso me tornar. Nesse contexto, a reencarnação não é apenas um conceito abstrato, mas uma manifestação tangível do eterno ciclo de renovação e evolução que permeia a existência não somente humana mas de tudo que é vivo dentro e fora desse pequenino planeta. E digo mais, tudo na vida que se movimente ou não diante de nossos olhos, pois está vivo não significa está em movimento.

Casa de Xangô, no Ilê Axé Opô Afonjá, meu templo e minha religião em Salvador - BRASIL

Recorri aos ensinamentos do Candomblé, minha religião, para tentar compreender como a reencarnação se procede. Dentro do contexto do Candomblé, essa compreensão pode variar de acordo com as tradições e interpretações de cada terreiro, região do Brasil e influencias de outras tradições que se mesclaram. Em algumas linhas de pensamento, a reencarnação é vista como parte do ciclo contínuo de vida e morte, onde o espírito passa por diferentes encarnações para evoluir espiritualmente. Contudo, o conceito de Àtúnwà, principalmente nos irmãos religiosos Ojés que eu pude ser apresentado ao Ilê Asipá, comandado pelo Alapinim Metre Didi, cuja honra tive o prazer de conhecer. Eles gostavam de conversar e trocar ideias sobre questões um pouco mais profundas sobre a tradição comigo.


ATUNIWÁ

O conceito de Àtúnwà na tradição Yorubá é genuinamente fascinante, traduzido como "aquele ou aquela que volta novamente", encapsula a noção de reencarnação ou renascimento na cosmologia yorubá. Na nossa perspectiva yorubá, Àtúnwà é mais do que um mero conceito; é um processo espiritual no qual a alma retorna à Terra em uma nova forma física após um tempo da morte do antigo corpo. Este conceito reflete a crença profunda na continuidade da vida após a morte e na interconexão entre os diversos estágios da existência. Assim como a própria Valentina, cujo nome ressoa com esse ciclo de renascimento e renovação.


Pintura de André Mustafá que fala sobre AXEXÊ, clique aquiaqui e saiba mais.


Valentina, minha filha, representa para mim um elo com o passado e um vislumbre do futuro, uma encarnação única na jornada espiritual da família. Assim como Àtúnwà, ela carrega consigo a promessa de crescimento espiritual, fortalecimento da ancestralidade e cumprimento do destino pessoal, refletindo a complexidade e a beleza do ciclo da vida.

Àtúnwà está profundamente enraizado na cosmovisão yorubá, que valoriza a ancestralidade, a comunicação com os espíritos e a interação entre o mundo material e espiritual. Nesse contexto, Valentina é mais do que apenas minha filha; ela é um lembrete vivo da importância de honrar nossas raízes e abraçar o fluxo contínuo da existência. Ela faz parte de uma família maior do Candomblé, em que Xangô, Iemanjá, Iansã e Ogun estão nos orientando e fortalecendo. 

Pintura de André Mustafá que fala do nascimento das cabeças. Querendo saber mais clique aquiaqui.


Talvez Valentina nunca seja diretamente ligada ao Candomblé, mas o Candomblé está diretamente sintonizado a Ela. Afinal de contas, se formos pensar de forma mais ampla e esotérica, cada um de nós é um pouco católico, assim como somos budistas, taoistas e de outras tantas religiões antigas... Não é porque nós, ou nossos pais ou avós, se esqueceram ou querem esquecer, que não fazemos parte desse todo reencarnatório... Existe sim a memória do DNA, que está estreitamente entrelaçada com nossas ancestralidades.

Richard Gerber, em seu livro "Vibrational Medicine," explora a ideia de que nosso DNA pode conter registros de experiências passadas. Ele sugere que essas memórias podem ser transmitidas através de gerações, influenciando a saúde física, emocional e espiritual das pessoas. Gerber acredita que o DNA não é apenas uma sequência de genes, mas também um portador de informação vibracional que pode ser acessado e influenciado por práticas espirituais e energéticas.



A PINTURA DE MUSTAFA

Na pintura que fiz, a imagem retratada à direita representa o Gẹ̀lẹ̀dẹ̀, uma sociedade secreta feminina de caráter religioso originária das sociedades tradicionais iorubás. Essa prática ancestral manifesta o poder feminino sobre aspectos vitais da vida, como a fertilidade da terra, a procriação e o bem-estar da comunidade. No contexto do Gẹ̀lẹ̀dè, as mulheres desempenham papéis fundamentais, liderando cerimônias, rituais de cura, danças e cantos sagrados que buscam honrar e invocar as forças da natureza e dos ancestrais para o benefício coletivo.


Na essência dessa representação está o simbolismo da cobra, uma imagem de fertilidade que transmite as energias provenientes da ancestralidade para o mundo terreno. Ela representa o caminho do útero, onde o feto se desenvolve, até a porta da vagina, o limiar entre o mundo espiritual e o plano material da Terra. Nesse momento crucial, aguarda o Orixá Ogun, responsável por iluminar o caminho junto ao ORÍ (cabeça material e imaterial) e ao ODÚ (destino, o que está traçado no cmainho daquele que reencarna), escolhidos pelo bebê ainda no espaço espiritual, sob a orientação de Ajalá, o modelador de cabeças.

Ao analisar a figura do Gẹ̀lẹ̀dẹ̀ e sua representação simbólica, percebemos uma conexão profunda com a jornada de Valentina. Assim como a cobra simboliza a transição do mundo espiritual para o material, a chegada de Valentina ao plano terreno é acompanhada pela presença dos Orixás, guiando-a em seu caminho de vida. Essa imagem não apenas representa a fertilidade e o nascimento físico, mas também evoca a continuidade da linhagem ancestral e a proteção espiritual que acompanha cada indivíduo em sua jornada na Terra.

O Festival de Máscaras Gelede do povo Yoruba em Cové


 

BiBLIOGRAFIA:

STEINER, Rudolf. A EDUCAÇÃO DA CRIANÇA. Editora Antroposófica, 1996.

GERBER, Richard. MEDICINA VIBRACIONAL: Uma Medicina Energética Para O Século XXI. Editora Cultrix, 1997.

BASTIDE, Roger. O CANDOMBLÉ DA BAHIA. RITO NAGÔ. Companhia das Letras, 2001.


 

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